quinta-feira, 15 de maio de 2008

Índios no Brasil: genocídio sem trégua


Texto de: Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. I, p. 145-149 O destino dos povos indígenas no continente americano, após o descobrimento, podia ser resumido em uma fórmula simples: a liberdade, o direito a uma existência saudável e à autonomia cultural aumentam de acordo com o distanciamento dos brancos. Por isso, a última grande nação indígena das Américas ainda relativamente pura, em 1980, era a dos Ianomani: dez a 12 mil índios que, vivendo no extremo norte do Brasil, estavam protegidos da "civilização" pelas enormes distâncias amazônicas, pela mata impenetrável e pela precaução de evitar contatos com os brancos. Os índios sempre tiveram consciência dessa terrível "lei de distanciamento". Não houve povo, entre as centenas de culturas estabelecidas há milênios na América, que a partir de 1498 não tenha precisado realizar a sua diáspora mata adentro, fugindo ao avanço da "civilização". No Brasil, os primeiros a fugir foram os índios da costa Sul e Leste, onde a colonização foi mais rápida e mais abrangente. Os Tupinambá fornecem um dos exemplos mais extraordinários desse êxodo. Logo após 1500, esse povo iniciou um espantoso movimento de migração - o maior de que se tem notícia em tempos históricos na América -, composto por dezenas de milhares de índios, à procura de refúgio na Amazônia. Buscavam, em peregrinação, a "terra sem males", como eles mesmos diziam. Embora na prática o extermínio indígena tenha prosseguido sem tréguas, no período entre 1500 e 1984 as idéias sobre os índios deram passos de gigante, no Brasil. Os portugueses, quando os "descobriram", nem sequer admitiram a sua condição de seres humanos. Por algum tempo, os índios foram considerados selvagens sem alma, "inábeis para a fé católica" e que deviam "ser tratados e reduzidos a nosso serviço como animais brutos". Essa situação perduraria até 1537, quando o papa Paulo III afirmou, em bula, que os índios eram homens e assim deviam ser tratados. Diante disso, as coisas começaram a mudar. Em 1570, uma lei proibia formalmente a escravização dos índios. Mas ainda era necessário torná-los "civilizados", isto é, convertê-los a todo custo à religião e aos costumes dos europeus. Para isso, decidiu-se que ficariam sob a estrita responsabilidade dos religiosos, principalmente os jesuítas. E seriam agrupados e isolados em "aldeamentos". Tratava-se de um conjunto de alojamentos onde, sob a administração dos jesuítas, os índios podiam falar a "língua geral" - o tupi -, mas também tinham que freqüentar a missa e aprender o português e ali não podiam andar nus. A nudez, a poligamia e outros hábitos dos índios eram considerados "costumes depravados", e não manifestações culturais legítimas desses povos, desenvolvidas em condições próprias e originais. A nova idéia, então, era a de "converter" o selvagem à civilização e, por isso, os jesuítas dedicaram empenho especial às crianças índias, para as quais chegaram a ser criados "internatos" indígenas. Por volta de 1750, quando o marquês de Pombal assumiu o comando do governo português, a política indigenista foi novamente modificada. A sangria dos índios, em primeiro lugar, foi ainda mais severamente desaconselhada: uma lei proibia a existência das chamadas "tropas de resgate" - que eram, de fato, expedições de caça de escravos ou de punição às aldeias rebeldes, através das chamadas "guerras justas". Em segundo lugar, os religiosos foram afastados, Pombal achava que podia apressar a integração dos índios à sociedade colonial e começou instituindo prêmios em terra ou dinheiro para quem se casasse com índia. Com a República, os Estados são responsáveis pelos índios No lugar dos aldeamentos, surgiram os "diretórios". As aldeias eram transformadas em cidades. Tinham um chefe índio, mas também um diretor branco, um juiz e até vereadores. Parte dos moradores devia servir ao Exército real e o resto trabalhar para os brancos, nas lavouras, por exemplo. Em troca, recebiam um salário, que era acertado pelo diretor branco. Os índios ainda tinham que entregar ao governo a sexta parte de sua própria produção e pagar dízimos à igreja. A "língua geral" foi proibida. Os diretórios foram finalmente extintos quando, com a proclamação da República, e 1889, se transferiu para os Estados a responsabilidade pelos índios. Seguiu-se um período de abandono, até que, em 1911, o marechal Rondon criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Seu lema era "Morrer se preciso for, matar nunca". De 1907 a 1917, grande conhecedor dos índios, Rondon unificou o País através do telégrafo, estendendo-o às imensas regiões bravias do Norte. Se sua trajetória fosse esticada numa reta, somaria perto de 50 mil quilômetros. Contatou dezenas de novos povos indígenas, inspirando confiança aos que ainda se mostravam hostis. Novo, em Rondon, não era só a idéia, mas também o fato de que uma autoridade do Estado tinha respeito pelos índios e o provava no dia-a-dia. Os índios participaram ativamente da nossa história Na verdade, o comportamento do marechal Rondon pautou-se por aquilo que faltou à legislação anterior e posterior a ele: reconhecer o direito de autodeterminação dos índios. Pensou-se, em vez disso, em mantê-los sob tutela. Foi com essa visão que se criou a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) que, em 1967, substituiu o SPI. O índio podia comerciar ou ser preso, mas nesses casos era representado pela FUNAI, a sua tutora. O índio era considerado brasileiro, mas não podia votar ou ser votado. Podia pedir "emancipação", mas esse era um privilégio suspeito: transformar-se desse modo em um cidadão comum geralmente levou o índio a entrar para a civilização pela porta dos fundos, para as camadas mais pobres e injustiçadas da sociedade branca. Emancipado ou protegido, o índio não tinha realmente direitos. A partir de 1973, por exemplo, o governo prometeu, em cinco anos, demarcar toda a terra indígena. Mas em 1984 nem 20% delas estavam demarcadas, segundo a própria FUNAI. Em 1680, a Coroa portuguesa havia chegado ao ponto central na defesa das nações indígenas no Brasil: aceitaria explicitamente o princípio de que os índios eram "os primeiros ocupantes e donos naturais destas terras". Isto é, o Brasil. Mas todas as leis ficaram obstinadamente no papel. Após a independência, nenhuma providência legal nova havia sido tomada para resolver o problema do índio. E isso se repetiria na Constituição de 1824 e nas Constituições republicanas de 1891, 1934 e 1937. Apenas em 1946 restabeleceu-se que os índios teriam direitos às terras, mas não podiam vendê-las. Em 1967 e 1969 foi pior: as terras indígenas passaram a ser propriedade do Estado. Ficou apenas a promessa de que os índios teriam o usufruto exclusivo e permanente das terras, que não podiam ser compradas ou vendidas. A idéia de proteger o índio estava em profundo desacordo com a realidade: longe de serem indefesos, os índios participaram ativamente da história do País. Foram um elemento de grande importância na consolidação da nação brasileira. A historiografia oficial reconheceu o papel histórico dos índios, mas de maneira parcial, citando apenas os guerreiros como Felipe Camarão, que se destacou na luta pela independência, ou Araribóia, que ajudou a expulsar os franceses do Rio de Janeiro em 1567. Mas o triste exemplo dos Tupinambá mostra que o índio se incumbiu de outras tarefas importantes. Os Tupinambá contribuem para a ocupação da Amazônia À época em que os Tupinambá atingiram o Pará, em 1600, os portugueses estavam ativamente empenhados num primeiro esforço para consolidar a sua ocupação definitiva da região (como de resto, de todo o País). Em 1616, com esse objetivo, fundou-se a cidade de Belém, futura capital do Estado do Pará. O fundador era um capitão-mor, Francisco Castelo Branco, enviado especialmente pelo rei de Portugal, que recebeu nessa tarefa ajuda essencial dos Tupinambá. Com o seu grande conhecimento do meio, os índios deram-lhe informações preciosas sobre as trilhas na mata, a geografia geral da região e como sobreviver nos rios e florestas. Escravizados ou usados como mão-de-obra, de um modo geral, os Tupinambá contribuíram decisivamente para o esforço real de ocupação. Além disso, a participação histórica das nações indígenas foi efetiva mesmo quando os seus interesses não coincidiam com os interesses portugueses - o que era muito comum. Logo após a construção de Belém, os Tupinambá parecem ter recebido ajuda dos franceses e de parte da população portuguesa para iniciar uma série de insurreições. Elas se prolongaram por dez anos, até serem debeladas - feito de um dos maiores matadores de índios de todos os tempos, Bento Maciel Parente. Os registros afirmam que Parente teria massacrado ou levado ao cativeiro 500 mil Tupinambá. O que caracterizou, então, profundamente o papel histórico dos índios foram as relações contraditórias estabelecidas com os colonizadores brancos: como estes últimos eram mais fortes, as situações de conflito foram sendo gradualmente resolvidas em prejuízo - na verdade pelo extermínio - dos povos indígenas. A população indígena no Brasil, em 1500, chegava a cinco milhões de índios. À época do marquês de Pombal, em meados do século 18, a estimativa era de um a dois milhões. De 1900 em diante avalia-se que 95 nações, falando 35 línguas, foram extintas. Em 1910, falava-se em um milhão de índios e, em 1945, na metade disso. Em 1980, os mais otimistas não contavam 250 mil índios no Brasil. A grande maioria destes sobreviventes estava na Amazônia, último grande santuário indígena. Ao Regime Militar coube aplicar o que poderia ser o golpe fatal - não só contra os remanescentes das regiões Sul, Leste e Nordeste, mas também contra os da Amazônia. Uma ilustração desse fato foi quando a rodovia Perimetral Norte cortou ao meio a terra Ianomani, em 1974, tornando-se uma ameaça de extinção desse povo. Mas a investida do Regime Militar começou mais sistematicamente a partir de 1973, embora já em ação há pelo menos cinco anos. Em 1973, porém, a FUNAI anunciou que pretendia "ajustar os interesses e anseios dos índios às necessidades do Programa de Integração Nacional", cujo objetivo, por sua vez, era preparar a penetração em massa de grandes empresas nacionais e internacionais no paraíso de riquezas naturais da Amazônia. D. Tomás Balduíno, ex-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), sumarizou bem a situação do índio, depois desse período, no relato que fez à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre problemas fundiários, em 1977. "À margem dos lavradores esbulhados", disse o bispo, "encontram-se hoje os povos indígenas". D. Tomás depôs com base nos fatos coletados pelo próprio CIMI, um órgão vinculado à Igreja, criado em 1972 por um grupo de religiosos indignados com o que viam, principalmente na Amazônia. A lista completa de arbitrariedades levantadas por eles era grande e muito convincente. Envolvia, por exemplo, a ação do famoso Grupo Itamarati - que comprou as falsas propriedades e que contrapôs ao protesto dos lavradores e índios apenas os "direitos" de ocupação dos seringalista. Essa negociata foi denunciada ao jornal "O Estado de S. Paulo", mas inutilmente, porque a censura então em vigor proibiu a divulgação da notícia. Um ex-governador - Ponce de Arruda, do Mato Grosso - foi citado nominalmente. D. Tomás acusou-o de doar terras do Tapirapé, em seu Estado, a três agropecuárias, entre elas a Codeara, do influente grupo BCN (Banco de Crédito Nacional). E os casos não se limitavam à Amazônia, como se via pela madeireira dois irmãos Slaviero, no Paraná, que também "comprou" terras dos Caingangue, Xokleng e Guarani. Nestas terras estavam as maiores reservas de pinheiros do mundo. Outra compra ilícita foi a da empresa multinacional Aracruz, que construiu nas terras dos Tupiniquim, no Espírito Santo, uma gigantesca fábrica de celulose. A FUNAI, na verdade, já surgiu de uma concepção suspeita. Ao contrário do SPI, que era ligado ao Ministério da Agricultura - e portanto apto a lidar com o problema central da terra -, a FUNAI trabalhava sob o comando do Ministério do Interior, articulada aos planos desenvolvimentistas da SUDAM (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia). E não só era impotente contra os desmandos de empresas ou autoridades, mas foi também acusada de fornecer certificados negativos sobre terras na verdade habitadas por índios. Isso teria acontecido no Vale do Guaporé, Mato Grosso, prejudicando os Nambiquara. Também os funcionários da FUNAI faziam suas próprias falcatruas, furtando madeira dos Caingangue para as serrarias da fundação, em Santa Catarina. E, segundo o sertanista Orlando Villas Boas, também os pastos dos Carajá, da ilha de Marajó, eram alugados pela FUNAI a diversas empresas do continente. Por assumirem corajosamente a defesa do índio, os padres foram sistemataicamente perseguidos nos anos 70. Alguns dos missionários mais ativos na Amazônia foram expulsos do País sob o pretexto de serem estrangeiros (caso de muitos padres do Brasil). Outros, como o padre Rodolfo Lukenbein, em 1976, foram assassinados. Para o Regime Militar, os padres tornaram-se incômodos porque tinham revisto a sua atuação no passado, denunciando a "integração do índio à sociedade". O essencial, diziam agora os religiosos, era que os povos indígenas tivessem direito à autodeterminação, para resolver seus próprios assuntos; e essa autonomia só seria possível se esses povos fossem realmente soberanos sobre as terras que habitavam havia milênios. Índios se mobilizam e fortalecem a causa indígena A luta pela terra tornava-se, assim, o centro da luta em defesa dos índios, aproximando-a do movimento oposicionista mais geral contra o Regime Militar. Isso fortaleceu a causa indígena, também. Nessa época, os próprios índios começaram a conduzir a sua defesa, criando, inicialmente, as famosas assembléias indígenas, que às vezes reuniam mais de cem grupos de todo o País. Os Xavantes tornaram-se famosos, não só por discutir problemas comuns com várias outras tribos, mas ainda por organizar a ocupação dos prédios da FUNAI como protesto político. Um Xavante acabou elegendo-se deputado federal - o cacique Juruna. Outro grande cacique foi o Caingangue Ângelo Cretã, que era vereador, tinha conta em banco e mantinha-se informado sobre as cotações da Bolsa de Chicago. Sua morte, em um acidente automobilístico suspeito, levantou desconfiança de assassinato. Mas suas idéias permaneceram: para a sua sucessão, os seus oito mil ex-comandados providenciaram um processo democrático, com lista de eleitores, cédulas e urnas invioláveis. As novas idéias indígenas resultaram em uma série de vitórias parciais, em questões de terra, no final da década de 70. E prometiam avançar ainda mais, levando à criação também de grandes coligações políticas abrangendo todo o País, como a União das Nações Indígenas (UNI), de 1980. Sua característica central era unificar um grande número de tribos e povos em torno de sua luta comum, por um desenvolvimento mais justo e mais democrático. Esta, afinal, era também a luta da grande maioria dos brasileiros.

Sem comentários:

O Peixe Morcego Vulcânico Cego