segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Porque eles temem Michael Moore


Em Sicko, o novo filme de Michael Moore, aparece um jovem Ronald Reagan apelando à classe trabalhadora americana para rejeitar a «medicina socializada» como subversão comunista. Nas décadas de 1940 e 1950, Reagan foi empregado pela American Medical Association e pela grande indústria como o amável porta-voz de uma tendência neo-fascista a fim de persuadir os americanos comuns de que os seus verdadeiros interesses, tais como cuidados universais de saúde, eram “anti-americanos”.

Ao ver isto, encontrei-me a recordar os efusivos adeuses a Reagan quando morreu há três anos atrás. «Muitas pessoas acreditam», disse Gavin Esler no Newsnight da BBC, «que ele restaurou a fé na acção militar americana [e] era amado até pelos seus adversários políticos». No Daily Mail, Esler escreveu que Reagan «encarnava o melhor do espírito americano – a crença optimista de que os problemas podem ser resolvidos, de que amanhã será melhor do que hoje, e de que os nossos filhos serão mais ricos e mais felizes do que nós somos».

Tantas idiotices acerca de um homem que, como presidente, foi responsável pelo banho de sangue da década de 1980 na América Central, e pela ascensão do próprio terrorismo que produziu a al-Qaeda, tornaram­‑se a versão propagada nos meios de comunicação. A participação de Reagan em Sicko é um raro vislumbre da verdade da sua traição ao país dos colarinhos azuis que ele dizia representar. As trafulhices de um outro presidente, Richard Nixon, e de uma aspirante a presidente, Hillary Clinton, são de forma similar expostas por Moore.

Exactamente quando parecia que pouco restava a dizer acerca do grande trafulha do Watergate, Moore extrai das fitas da Casa Branca de 1971 uma conversação entre Nixon e John Erlichman, o seu ajudante que acabou na prisão. Um rico apoiante do Partido Republicano, Edgar Kaiser, chefe de uma das maiores companhias de seguros de saúde dos Estados Unidos, está na Casa Branca com um plano para «uma indústria nacional de cuidados de saúde». Erlichman remete-o para Nixon, que está aborrecido até que a palavra «lucro» é pronunciada.

«Todos os incentivos», diz Erlichman, «correm do modo certo: quanto menos cuidados [médicos] eles lhes derem, mais dinheiro fazem». Ao que Nixon replica sem hesitação: «Boa!» A cena seguinte mostra o presidente a anunciar à nação um grupo de trabalho que produzirá um sistema «dos melhores cuidados de saúde». Na verdade, é um dos piores e mais corruptos do mundo, como mostra Sicko, negando a vulgar humanidade a uns 50 milhões de americanos e, para muitos deles, o direito à vida.

A sequência mais assombrosa é capturada por uma câmara de segurança numa rua de Los Angeles. Uma mulher, ainda com o seu avental de hospital, cambaleia através do tráfego, para onde foi atirada pela companhia (aquela fundada pelo apoiante de Nixon) que dirige o hospital no qual tinha sido admitida. Ela está doente e assustada e não tem seguro de saúde. Ainda usa a sua pulseira de admissão, embora o nome do hospital tenha sido cuidadosamente apagado.

Mais tarde encontramos esse fascinante casal liberal, Bill e Hillary Clinton. Estamos em 1993 e o novo presidente está a anunciar a nomeação da primeira dama como aquela que cumprirá a sua promessa de dar à América um cuidado de saúde universal. E ali está a própria Hillary, «encantadora e arguta», como um senador lhe chamou, lançando a sua “visão” para o Congresso. O retrato de Moore da loquaz, coquete e sinistra Hillary recorda a soberba sátira política de Tim Robbins, Bob Roberts. Sabemos que o seu cinismo já está na sua garganta. «Hillary», informa a voz de Moore, «foi premiada pelo seu silêncio [em 2007] como a segunda maior receptora do Senado de contribuições da indústria de cuidados de saúde».

Moore disse que Harvey Weinstein, cuja companhia produziu Sicko e que é amigo dos Clintons, quis cortar esta parte, mas ele recusou. O assalto ao candidato do Partido Democrático que provavelmente será o próximo presidente é um desvio de Mooore que, na sua campanha pessoal de 2004 contra George Bush, apoiou a candidatura presidencial de general Wesley Clark, que bombardeou a Sérvia, e defendeu o próprio Bill Clinton, afirmando que «nunca ninguém morreu devido ao sexo oral». (Talvez não, mas meio milhão de crianças iraquianas morreu devido ao cerco medieval de Clinton ao seu país, assim como milhares de haitianos, sérvios, sudaneses e outras vítimas das suas incontáveis invasões).

Com esta aparente nova independência, a destreza e o humor negro de Moore em Sicko, que é um brilhante trabalho de jornalismo, sátira e realização, explica – talvez ainda melhor do que os filmes que lhe deram fama, Roger and Me, Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 – a sua popularidade e influência, e os seus inimigos. Sicko é tão bom que se perdoam as suas falhas, nomeadamente a romantização de Moore do Serviço Nacional de Saúde britânico, ignorando um sistema de dois níveis que negligencia os idosos e os doentes mentais.

O filme abre com um amargo carpinteiro descrevendo como teve de fazer uma escolha depois de dois dedos serem cortados por uma serra eléctrica. A escolha era US$60.000 para restaurar um dedo indicador ou US$12.000 para restaurar um dedo médio. Ele não podia permitir-se arcar com as despesas de ambos, e não tinha seguro. «Sendo um romântico irremediável», diz Moore, «ele escolheu o dedo anular» no qual usava a sua aliança de casamento. O talento de Moore conduz-nos a cenas abrasadoras, ainda que não sentimentais, tais como a ira eloquente de uma mulher a cuja filha pequena foi negado cuidado hospitalar e morreu de um ataque. Poucos dias depois de Sicko ser lançado nos Estados Unidos, mais de 25.000 pessoas inundaram o sítio web de Moore com histórias semelhantes.

A Associação dos Enfermeiros da Califórnia e o Comité Nacional Organizador dos Enfermeiros enviaram voluntários para ir para a estrada com o filme. «No meu entender», diz Jan Rodolfo, um enfermeiro de oncologia, «ele demonstra o potencial para um verdadeiro movimento nacional porque está obviamente a inspirar muitas pessoas em muitos lugares».

A “ameaça” de Moore é a sua visão certeira a partir da base. Ele abole o desprezo com o qual a elite da América e os meios de comunicação encaram as pessoas comuns. Este é um assunto tabu entre muitos jornalistas, especialmente aqueles que afirmam terem ascendido ao nirvana da “imparcialidade” e outros que professam ensinar jornalismo. Se Moore simplesmente apresentasse vítimas como de costume, com corridas de ambulância, deixando os espectadores chorosos mas paralisados, ele teria poucos inimigos. Não seria encarado como um polemista e auto-promotor e todas as outras etiquetas pejorativas que aguardam aqueles que dão um passo para além das fronteiras invisíveis em sociedades onde se diz que a riqueza equivale à liberdade. Os poucos que escavam mais fundo na natureza de uma ideologia liberal que se considera a si própria como superior, ainda que seja responsável por crimes enormes em proporção e geralmente não reconhecidos, arriscam­‑se a serem eliminados do jornalismo “de referência”, especialmente se forem jovens — um processo que um antigo editor certa vez me descreveu como «uma espécie de gentil defenestração».

Ninguém rompeu tanto como Moore, e os seus detractores são perversos ao dizer que ele não é um “jornalista profissional” quando o papel do jornalista profissional é tantas vezes o de servir com zelo, ainda que subrepticiamente, o status quo. Sem a lealdade destes profissionais no New York Times e noutras augustas instituições mediáticas “de registo” (a maior parte delas liberal), a invasão criminosa do Iraque poderia não ter acontecido e um milhão de pessoas estariam hoje vivas. Posicionado no lugar sagrado de Hollywood – o cinema – o Fahrenheit 9/11 de Moore lançou uma luz nos seus olhos, penetrou no ralo da memória, e contou a verdade. É por isso que audiências por todo o mundo o aplaudiram de pé e com entusiasmo.

O que me impressionou quando vi pela primeira vez Roger and Me, o primeiro grande filme de Moore, foi que éramos convidados a gostar de americanos comuns pela sua luta, resistência e política que ia para além da barulhenta e falsificada indústria da democracia americana. Além disso, é claro que eles “captavam-no”: que apesar de ser rico e famoso ele é, no fundo, um deles. Um estrangeiro a fazer algo semelhante arriscar­‑se­‑ia a ser atacado como “anti­‑americano”, uma expressão que Moore utiliza muitas vezes como ironia a fim de demonstrar a sua desonestidade. De repente, ele despede-se da espécie de asneiradas sem sentido, como aquela de uma série da Radio 4 da BBC que apresentou a humanidade como pro- ou anti-americana enquanto o repórter se extasiava acerca da América, “a cidade sobre a colina”.

Igualmente tendencioso é um documentário chamado Manufacturing Dissent, o qual parece ter sido produzido para desacreditar, se não Sicko, o próprio Moore. Feito pelos canadianos Debbie Melnyk e Rick Caine, ele diz mais acerca de liberais que gostam de olhar para os dois lados e dos ciúmes invejosos dos presunçosos. Melnyk conta­‑nos ad nauseam o quanto ela admira os filmes e a política de Moore e é por eles inspirada, depois procede a uma tentativa de assassínio do seu carácter com uma enxurrada de afirmações e boatos acerca dos seus “métodos”, juntamente com abuso pessoal, tal como aquele do crítico que objectou quanto ao “meneio” de Moore e mais alguém que disse considerar que Moore realmente odiava a América — era anti­‑americano, nada menos!

Melnyk persegue Moore para lhe perguntar porque, na sua tentativa de obter uma entrevista com Roger Smith da General Motors, deixou de mencionar que já havia falado com ele. Moore disse que entrevistou Smith muito antes de começar a filmar. Quando ela por duas vezes intercepta o caminho de Moore, fica com razão envergonhada com a sua afável resposta. Se há um renascimento dos documentários, ele não é beneficiado por filmes como este.

Isto não é para sugerir que Moore não deva ser seguido e desafiado sobre se sim ou não “seguiu atalhos”, tal como o trabalho do reverenciado pai do documentário britânico, John Grierson, tem sido reexaminado e questionado. Mas a paródia irresponsável não é o caminho. Virar a câmara ao contrário, como tem feito Moore, e revelar o “governo invisível” de manipulação e muitas vezes de subtil propaganda do grande poder é certamente um caminho. Ao fazer assim, o autor de documentários rompe o silêncio e cumplicidade descritos por Günter Grass na sua confissão autobiográfica, Descascando a Cebola, tal como a mantida por aqueles que «fingem a sua própria ignorância e atestam a de outros... distraindo a atenção de algo que se pretende esquecer, algo que no entanto se recusa a ir embora».

Para mim, um Michel Moore anterior foi aquele outro grande denunciante “anti­‑americano”, Tom Paine, que incorreu nas iras do poder corrupto quando advertiu que se à maioria do povo estavam a ser recusadas «as ideias da verdade», era tempo de assaltar o que chamou a «Bastilha das palavras» e que nós chamamos “os media”. Esse tempo está mais que ultrapassado.

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