segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Portugal-2007: Um balanço repressivo


Um dos balanços mais reveladores e (talvez por isso) menos revelados do Portugal-2007 é o saldo repressivo de um tempo que se mostrou fértil em ocorrências. Noticiados (ou nem isso) no correr dos dias, os exemplos sucedem-se e esquecem-se. Mas vistos no seu conjunto formam um quadro significativo como poucos da visão do Portugal do Partido Socialista, deixando-nos um eloquente alerta para o que se prepara. Só não vê quem queira muito não ver. O ano termina com o anúncio pelo Ministro da Administração Interna do recrutamento em 2008 de mais 2300 efectivos para a PSP e a GNR, que se juntarão ao exército policial cujo reforço a direita se afadiga em reclamar com crescente insistência: 25 mil homens na GNR, 21.500 na PSP e 1350 na Polícia Judiciária. Reprimir a acção… O uso deste dispositivo é enquadrado por uma histeria mediática constante, que abre sistematicamente os noticiários com reportagens e relatos de casos de polícia e histórias de tribunais. Esta maquinaria é, porém, empregue na (por vezes ridícula) repressão de manifestações das populações, como no Porto quando “centenas de homens e algumas carrinhas do Corpo de Intervenção” barraram bravamente o caminho de 500 adolescentes dos 14 aos 16 anos, estudantes do Ensino Secundário, que se aproximavam da Direcção Regional do Ensino do Norte (DREN) naquela cidade. Com não menor bravura, agentes policiais confiscaram faixas de propaganda aos alunos do secundário em Valongo, enquanto outros identificaram manifestantes, também do secundário em Gaia (cf. jornal “Avante”, 13-12-07). Em Janeiro de 2007, ficava a saber-se que a DRE de Lisboa ordenara em ofício a professores e funcionários escolares que tomassem parte na desmobilização de protestos estudantis. Enquanto em Outubro a DRE do Norte emitia a ordem para que fossem retiradas das escolas as faixas de propaganda estudantil. Em várias escolas do país os conselhos executivos proibiram essa propaganda não só no interior como nas imediações das escolas.A PSP envolveu-se também no que ficou conhecido como o “caso do Sindicato dos Professores” na Covilhã, para obter informações sobre uma manifestação prevista para a passagem de Sócrates pela cidade. Os agentes permitiram-se, então, “recolher documentação e deixar a recomendação aos sindicalistas de que “não gritassem insultos” ao Primeiro-Ministro. A governadora civil de Castelo Branco disse à agência Lusa (9-10-2007) que se tratava de um procedimento “habitual e rotineiro”. O caso mais mediatizado de intervenções policiais contra trabalhadores ocorreu, contudo, na “Valorsul”. Mas, embora sem imagens nem televisões, registaram-se procedimentos idênticos, a pedido dos patrões, na Grundig, na Agere e na Moveaveiro. GNR e PSP foram, aliás, sistematicamente enviadas contra os trabalhadores e sindicalistas envolvidos em lutas ao longo do ano. Tentativas de impedimento de plenários nas empresas, de desmembramento de piquetes de greve, identificação e processamento criminal de representantes sindicais ocorreram: no Freeport (impedimento de distribuição de um jornal sindical), em Guimarães (CTT, Agosto), Tancos (Escola Prática), Beja (Sindicato dos Metalúrgicos), Cacia (CT da Renaut), Montemor-o-Velho (dirigente sindical processado — houve 50 desde 2002, só no distrito de Lisboa), além de dois dirigentes do PCP também processados por entregarem um abaixo-assinado, junto à residência oficial do Primeiro-Ministro (cf. “Avante”, ed. citada). A repressão contra o direito de associação dos militares levou, por seu lado, a penas de mais de 100 dias de prisão disciplinar contra dirigentes associativos e a instauração de processos a dezenas de outros. E, por fim, neste campo, 2007 é também o ano em que um Governo decide criar uma base de dados para identificar e registar os grevistas da Função Pública e em que um Tribunal reconhece como legítima a medida. Outro dos casos falados do ano foi a heróica acção de dois soldados da GNR contra uma turba de centena e meia de activistas do movimento Verde Eufémia que destruíram uns pés de milho transgénico na herdade da Lameira, no Algarve. A 20 de Agosto, o próprio Presidente da República apelou, peremptório, às autoridades competentes para investigarem a violação da lei: “Não podem restar quaisquer dúvidas de que a lei em Portugal é para ser cumprida e quem tem o poder para a fazer cumprir não pode deixar de utilizá-lo” (cf. DN 21-08-07). … oprimir o pensamento Por ter “insultado o senhor Primeiro Ministro de Portugal”, conforme rezava a nota de culpa, foi processado e transferido da Direcção do Ensino do Norte o professor afecto ao PSD, Fernando Charrua, que terá contado, em privado, uma anedota sobre a anedótica licenciatura de Sócrates nesse escândalo político-académico chamado Universidade Independente. Uma secretária de Estado declarou na ocasião que em Portugal se podia dizer mal do Governo, sim, mas “em casa ou no café”. Não no local de trabalho! Por razões semelhantes, o ministro da Saúde demitiu a responsável pelo centro de saúde da longínqua Vieira do Minho, acusada de não ter retirado de um placard uma fotocópia ali afixada e que o governante considerou como atentatória da sua figura. Mais seriamente, porém, PS e PSD puseram-se de acordo para alterar a legislação eleitoral autárquica. Quem vencer, passa a governar com maioria absoluta as Câmaras Municipais. Os partidos parlamentares mais pequenos protestaram em vão. Anuncia-se agora, para 2008, a alteração da lei eleitoral para a Assembleia da República, reforçando a tendência para o poder absoluto de uma maioria de dupla face, um poder Dupont & Dupont, que alterne eternamente sem alternativa. Os partidos parlamentares mais pequenos protestam. Em vão. Da esquerda à direita, no entanto, os partidos parlamentares não governamentais esquecem-se unanimente de protestar contra a lei que PS e PSD aprovaram e todos deixaram passar em 2003, que ilegaliza os chamados “pequenos partidos”, com o pretexto da regra dos “cinco mil militantes”. Do MRPP ao PND, sete partidos não-parlamentares enfrentam, à entrada deste ano, a sua democrática extinção judicial. Aparentemente, dir-se-ia, nada disto, por si só, seria demasiado grave. A força encontra-se, porém, no sentido de conjunto da dominação. E especificamente, naquilo para que alertava há mais de um século Alexis de Tocqueville, em “A Democracia na América”, sobre as democracias maioritárias: “As palavras antigas de despotismo e tirania não são adequadas. A coisa é nova e é necessário defini-la já que não consigo dar-lhe um nome […] não quebra as vontades, mas amolece-as, verga-as e dirige-as; raramente obriga os cidadãos a agirem, mas opõe-se a quem aja por si próprio; nada destrói, limita-se a impedir que qualquer coisa seja criada; não tiraniza, mas incomoda, comprime, enerva, apaga, embrutece […] A obediência em relação aos pequenos assuntos é um facto de todos os dias, que todos os cidadãos sentem indistintamente. Isso não provoca o seu desespero, mas contraria-os constantemente e acaba por levá-los a abdicar da própria vontade”. É, pois, neste ponto que se joga a imperiosa necessidade de consciência e resistência.

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