Raramente os formalismos da conversa dos deputados na Assembleia foram tão ridículos como no dia em que Sócrates anunciou a ratificação do Tratado Europeu por via parlamentar. Um contraste de palhaçada entre, por um lado, aqueles “vossa excelência” a que os obriga o regulamento e, por outro, a aldrabice pegada das justificações do primeiro-ministro para não fazer o referendo. O argumento de Sócrates foram dois. Primeiro, a mentira de que o Tratado Europeu é “diferente” da chumbada Constituição Europeia de há dois anos. Sabemos que o conteúdo é praticamente o mesmo, que tiraram o hino e a bandeira e pouco mais; o essencial mantém-se e só lhe mudaram o nome para, com esta finta jurídica, confirmarem o que já se sabia: a Europa do capital tem medo da opinião dos povos como o diabo da cruz. A segunda razão – já aflorada por Mário Soares e confirmada na Quadratura do Círculo por Jorge Coelho em nome do PS – é a de que “não se pode referendar um documento tão extenso e tão complexo”. O que eles querem dizer é que, para maginalizar os eleitores, basta arranjar maneira de complicar o paleio “técnico” das leis e dos tratados, e reservar assim para os “especialistas” decisões que têm a ver com a vida de todos. Esta não é a primeira aldrabice do governo de Sócrates, longe disso, e certamente não será a última. Mas é especialmente nojenta porque é descarada e é atirada como um insulto explícito à inteligência dos eleitores. Estamos daqui a ouvir os telefonemas dos “patrões” Angela Merckel, Sarkozy e Brown: “Tu vê lá o que é que arranjas. Tens a certeza de que ganhas o referendo?” E o outro, do lado de cá: “Nem por isso. Temos, há vários meses, um grupo de assessores a analisar as probabilidades. Esta gentalha (a gentalha somos nós) não percebe nada do Tratado, mas… como está muito zangada com o governo por outros motivos, era capaz de chumbar o Tratado só para correr connosco”. E a questão ficou decidida: “Então trata lá de acabar com isso.” A União Europeia em todo o seu esplendor. Sócrates e o PS em todo o seu esplendor. Estamos a falar, agora, sobretudo da questão do estilo. Já sabíamos que esta Europa nada tem a ver com os interesses dos trabalhadores, antes pelo contrário; é uma caminhada na unificação e no reforço do grande capital europeu, feita à revelia de quaisquer princípios democráticos. Já sabíamos que esta Europa é um negócio em que os governos, por meio de uma sucessão de mentiras como a do Tratado – ou como a outra, mais antiga, da “Europa connosco” de Mário Soares –, vão servindo de biombo à total hegemonia dos grandes interesses privados sobre as nossas vidas quotidianas. E, se não sabemos, devíamos saber que a única Europa que nos interessa é a que há-de unir as grandes massas de gente que nela trabalha e sofre. Mas, o que nos disseram ontem estes empregados do capital foi que já não precisam da “mística” europeia para nada. Foi o que significou Sócrates com aquele sorriso cínico. Acabou-se o “envolvimento ideológico” democrático da Europa, às urtigas as estrelinhas e o Beethoven. “Vocês estão de rastos, protestam com isto e aquilo, os centros de saúde, as cêntimos dos reformados, os 600 mil desempregados, os dois milhões de pobres, mas deixam-se comer dois dias depois e a gente continua. Se for preciso ainda votam em nós outra vez, porque não há mais ninguém”. Serve para quê o ar indignado de Suas Excelências os deputados do PC e do BE? Serve para quê o “mecanismo democrático” da moção de censura do Bloco? Sabem para que serve? Para dizer à gente: “Estejam quietinhos que estas coisas resolvem-se aqui, com estes mecanismos”. Faz parte do espectáculo. Onde está o povo furioso, roubado, espoliado e aldrabado? Quando é que vamos decidir-nos a varrer este lixo da porta da nossa casa? Estamos zangados? Estamos, sim senhor. Então, e o que vamos fazer com esta zanga? Entregar a chave da casa assaltada ao ladrão que vier a seguir?
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