sexta-feira, 2 de maio de 2008

Os biocombustíveis da fome


Rita Calvário
Esquerda

Diz o Banco Mundial que o preço global dos alimentos aumentou 83% nos últimos 3 anos. O trigo, o leite e a manteiga triplicaram o seu preço desde 2000 e o frango, o arroz e o milho custam hoje o dobro. Este aumento é generalizado nos bens alimentares e é para durar, avisam os especialistas. Estima a FAO e a OCDE que alguns produtos agrícolas vão continuar a sofrer aumentos de preços na ordem dos 20 a 50% ao longo dos próximos 10 anos. Perante esta realidade soa o alarme da crise alimentar e da fome.

Desde Janeiro de 2007 que os protestos e marchas da fome sucedem-se nos países mais pobres perante o desespero. Primeiro foi o México devido ao aumento em 400% do preço do milho, alimento base da população. Mais recentemente no Egipto, devido à duplicação do preço dos alimentos num ano. No Haiti, provocando 4 mortes e a queda do Governo. Nos Camarões, Costa do Marfim, Senegal, Burkina Faso, Etiópia, Madagáscar, Mauritânia, Moçambique, Uzbequistão, Bolívia, Indonésia, Filipinas, Paquistão, Tailândia, Índia, Iémen.

O Programa Mundial de Alimentos da ONU avisa que, para assegurar um mínimo vital a 73 milhões de pessoas que dependem do seu programa de assistência, deverá desembolsar em 2008 pelo menos 30% mais do que no ano passado, ou seja, cerca de 500 milhões de dólares suplementares. Avisa ainda que 33 países na Ásia e África enfrentam uma forte instabilidade devido ao alastramento da fome nas zonas urbanas.

Alerta o presidente do FMI que o aumento dos alimentos em poucos meses fez retroceder em 7 anos a luta contra a pobreza no mundo, ameaçando mergulhar ainda mais na pobreza 100 milhões de pessoas.

«A alimentação representa cerca de 10-20% do gasto dos consumidores nos países industrializados, mas mais de 60 a 80% nos países pobres, muitos dos quais são importadores líquidos de alimentos», refere a FAO. Ao mesmo tempo alerta que para 2007/2008 a factura de importação de cereais nos países mais pobres do mundo pode subir 56%, mais que os 37% registados em 2006/2007; para os países de baixo rendimento e deficitários em alimentos de África, a factura de cereais é projectada subir 74%.

No final da semana passada, o Banco Mundial e o FMI acusaram os agrocombustíveis de ser a principal causa para o aumento do preço de alimentos básicos. Já os vários organismos da ONU têm vindo a alertar para uma revisão da política dos agrocombustíveis pelo seu contributo para a crise global do preço dos alimentos: «Nós temos de nos preocupar sobre o facto da possibilidade de se tirar terra ou substituir terra arável devido aos agrocombustíveis», referiu o secretário-geral da ONU no início deste mês.

O FMI assegura que os biocombustíveis contribuíram para quase metade do aumento da procura alimentar, o que afectou o preço de um conjunto de matérias-primas.

Perante a gravidade da situação apelam a medidas urgentes de apoio ao combate à fome e que os países «sejam sensíveis nestes momentos às dificuldades que atravessam os países que têm problemas de nutrição», o que suporia abandonar o cultivo de matérias-primas destinadas à energia para destiná-las ao mercado alimentar.

No dia 10 de Abril, o conselho científico da Agência Europeia para o Ambiente defendeu que a União Europeia deve suspender a meta dos 10% dos biocombustíveis utilizados nos transportes até 2020. Este conselho, composto por 20 cientistas independentes de 15 Estados Membros, considera que a meta dos dez por cento é demasiado ambiciosa e terá efeitos «difíceis de prever e de controlar». Aconselha a realização de um novo estudo sobre os riscos e benefícios dos biocombustíveis, bem como a «definição de uma meta mais moderada e a longo prazo, se a sustentabilidade não puder ser garantida».

Ontem, veio o presidente da Comissão Europeia afirmar que pediu a realização de um amplo estudo sobre o impacto dos biocombustíveis, na agricultura, preços e desenvolvimento, mas parece continuar sem vontade de alterar a meta.

Segundo o conselho, a produção de biocombustíveis ainda liberta gases com efeito de estufa em quantidades significativas, implicando «a combustão de recursos muito valiosos e finitos». Alertam ainda que «o solo arável necessário para a União Europeia conseguir cumprir a meta dos dez por cento excede a área disponível», e que a consequência da intensificação da produção de biocombustíveis é o «aumento das pressões no solo, água e biodiversidade». O cumprimento da meta irá significar «a importação de grandes quantidades de biocombustíveis» com a ocupação de largos milhões de hectares de solo, e que «a destruição acelerada das florestas tropicais devido ao aumento da produção de biocombustíveis já está a acontecer em alguns países em desenvolvimento. A produção sustentável fora da Europa é difícil de conseguir e de monitorizar».

Perante os alertas das mais variadas organizações internacionais, o Governo português continua a afirmar­‑se orgulhoso de ter decidido antecipar em 10 anos a polémica meta proposta pela Comissão Europeia, estabelecendo o objectivo de 10% até 2010. Que os mais pobres dos países mais pobres passem fome, parece que não é motivo de preocupação para Sócrates e os seus Ministros. Muito menos em Angola e Moçambique, e talvez Brasil, onde há projectos nacionais liderados pela GALP. Que os mais pobres de Portugal sejam afectados pela inflação dos alimentos básicos, como o pão que já aumentou 30% e o leite 20%, parece que também não os preocupa. Afinal, o combate à pobreza e exclusão social não é o forte deste Governo, como bem o sabemos pelas suas sucessivas políticas anti-sociais.

A sua irresponsabilidade mostra ainda que não tem qualquer estratégia séria para o sector dos transportes, o maior responsável pelas emissões de gases de estufa e em crescimento exponencial. Portugal apresenta o 5º pior resultado da União Europeia a 27, com um aumento de 96% entre 1990 e 2005 de emissões no sector dos transportes, sendo que o automóvel privado representa já quase 60% do total de emissões do sector.

Inverter esta lógica de supremacia da rodovia e do transporte individual não é política deste Governo. Reduzir o consumo de combustível no sector dos transportes, apostando nos transportes públicos e na ferrovia, certamente que não. Aumentar a qualidade de vida das pessoas e das cidades, melhorando as condições de mobilidade e acessibilidade para modos mais sustentáveis, está definitivamente fora da sua visão.

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