quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A crise e o poder global depois dela

Vamos ao que realmente conta: em que medida a crise actual afecta as relações de poder no mundo actual?
Para isso é preciso resumir em que momento da trajectória recente do capitalismo ela se situa e qual a configuração de poder que ela encontra e altera. Vivemos um período histórico marcado por duas grandes viragens – ambas de carácter regressivo: a passagem de um mundo bipolar a outro, unipolar, sob hegemonia imperial estadunidense; a transição de um modelo regulador a outro, de carácter neoliberal, de desregulação.
A transição foi igualmente a de um período longo de carácter expansivo, iniciado no segundo pós-guerra e concluído em 1973, a um período longo de carácter recessivo – porque a desregulação levou à transferência maciça de capitais do sector produtivo para o sector especulativo e, como consequência, a um período de baixos índices de crescimento.
Nesse marco, a década passada foi a lua-de-mel do novo período histórico, com o fim da URSS e os EUA, à cabeça do bloco imperialista, com capacidade de impor a “pax americana”, com apoio da ONU e/ou da OTAN, desenvolvendo as chamadas “guerras humanitárias” – no Iraque, na Bósnia. Ao mesmo tempo, os EUA lideraram um ciclo curto expansivo, coincidente com o governo Clinton, onde reinou a euforia de uma suposta “nova economia”, que superaria o carácter ciclo da economia capitalista. Foi o auge da hegemonia norte-americana e do modelo neoliberal.
O esgotamento desse ciclo estadunidense – acompanhado das crises nas economias brasileira e argentina, na região onde mais reinava o neoliberalismo – e a reacção do governo Bush aos atentados de 2001, vieram alterar esse quadro idílico, da primeira década do novo período histórico. O segundo foi marcado pelas guerras do Iraque e do Afeganistão, pelo surgimento e coordenação de cada vez mais governos do continente em projectos autónomos de integração, assim como pela consolidação do ritmo de crescimento da China.
A crise, iniciada nos EUA e estendida à Europa, ao Japão e ao resto do mundo, acrescenta-se a esses elementos para configurar a conjuntura actual. Ela acentua elementos já presentes anteriormente: o declínio económico dos EUA, a fragilidade de um modelo centrado na acumulação financeira, o avanço de uma multipolaridade económica no mundo, o fracasso dos EUA de resolver militarmente as guerras do Iraque e do Afeganistão. A crise que se instaura, mais forte e prolongada que em outros lugares, nos EUA, enfraquecerá ainda mais essa economia. Porém, os EUA utilizam a sua capacidade de iniciativa política e de liderança sobre outras potências centrais, para tentar impor a sua solução à crise, exportar os seus danos mais graves e buscar recompor-se como potência económica.
Apesar dessas realidades, a nova relação de forças vai depender das disputas sobre quem pagará os pratos quebrados e que tipo de discurso triunfará, como interpretação da crise. Apelar ao Estado, depois de 1929, foi sempre um instrumento inclusive do liberalismo, para recompor as condições de funcionamento do mercado.
Hoje existe uma derrota ideológica forte das ideologias de mercado, quaisquer que sejam as justificativas que se trate de dar. Porém, podem predominar soluções conservadoras, mesmo com utilização do Estado, possibilidade mais provável hoje, pela composição de direita do quadro político europeu e japonês. Para as grandes potências capitalistas trata-se de salvar, a qualquer preço, a estruturas económica-financeiras existentes, com intervenções estatais e maciças injecções de dinheiro.
O quadro pós-crise e as suas novas configurações de poder estão abertas. Pode dar-se um refortalecimento dos EUA como potência hegemónica, conforme ele consiga exportar uma parte dos efeitos negativos da crise, compartilhando-os com as outras economias centrais, mas, principalmente, impondo duras soluções internas para a massa da população norte-americana e, principalmente, para os países da periferia, a começar pelos emergentes.
Esta alternativa será possível se a principal variante da crise não se colocar em funcionamento, isto é, se as maiores economias emergentes e, em particular, os projectos de integração da América Latina, não criarem as suas próprias políticas diante da crise e compartilharem – activa ou passivamente – as políticas das potências centrais do capitalismo. A alternativa, que pode efectivamente mexer no quadro de poder mundial sob os efeitos da crise actual, deve vir, antes de tudo, do aprofundamento dos processos de integração latino-americanos, a começar pelo Banco do Sul – com o avanço decisivo para a criação de uma moeda única regional, de um Banco Central único, de políticas económicas cada vez mais articuladas, de processos de regulação da circulação de capital, entre outras medidas. O que, por sua vez, implica no aceleramento da implantação e da assunção de responsabilidades por parte do Parlamento do Mercosul, da Unasul, do Conselho Sul-americano de Defesa.
Ao mesmo tempo, requer o aprofundamento da coordenação dos países do Sul do mundo, para evitar que se exporte para essa região a crise forjada no Norte. E, paralelamente, que se desenhe e se coloque em prática uma visão e uma política de superação da crise a partir dos interesses do Sul do mundo, que necessariamente aponte para a superação do modelo neoliberal e dos organismos internacionais responsáveis por ela.
O mundo não será o mesmo, passada a crise actual. Abre-se, com ela, uma gigantesca disputa – de interesses e de interpretações – sobre o seu significado e sobre as lições a tirar dela. O Norte busca rearticular-se para defender-se das suas evidentes responsabilidades e tratar de impor as suas soluções, exportando grande parte das suas consequências negativas. Resta ao Sul do mundo – e à América Latina em particular – saber defender os nossos interesses, projectar a nossa visão sobre o sentido dessa crise e colocar em prática políticas de superação do neoliberalismo e de criação de um mundo multipolar e pós-neoliberal.

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