segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O mau da fita


A última emissão de 60 Minutos incluiu uma reportagem verdadeiramente surpreendente, a ponto de parecer um pouco patusca. Tratava-se ainda do pretexto invocado pelos Estados Unidos para desencadearem a invasão do Iraque. Sobretudo depois das ainda recentes declarações de Durão Barroso sobre o assunto, confirmando que as informações acerca de armas iraquianas de exterminação maciça eram falsas, como falsos eram os documentos que afirmara ver com os seus próprios olhos, e acrescentando ainda que havia sido muito empurrado por Aznar no sentido de apoiar o ataque, o assunto parecia arrumado. Os Estados Unidos teriam provado uma vez mais a sua vocação para tecer imposturas, para tanto dispõem aliás de grandes meios humanos e técnicos, e o irresistível cheiro do petróleo decidira George W. Bush e o seu bando. Eis senão quando a reportagem do 60 Minutos vem contar-nos uma estória que repõe, pelo menos em parte, a inocência da administração norte-americana. É que eles terão sido enganados, coitados. O mais poderoso aparelho de espionagem e conexos serviços secretos do mundo terá sido enganado, e por um homem apenas. Que nem sequer era norte-americano. Era (ou é) iraquiano, como de resto convinha a esta espécie de happy­‑end ilibador da gente dos States: uma vez assim, ficou provado, e desta vez para a História, que os iraquianos é que são maus, criaturas em quem não se pode acreditar, e que o único pecado norte-americano terá sido a ingenuidade. Não ficou dito que os Estados Unidos foram afinal as grandes vítimas de um pequeno mas eficaz aldrabão iraquiano, mas não ficámos muito longe disso. Quanto ao aldrabão, verdadeiro autor de uma guerra que provocou já muitos milhares de vítimas e que, como se sabe, prossegue sem fim à vista, a reportagem mostrou­‑nos o retrato, não fossemos nós supor que o homem não existia. Existe, sim senhores. Se for aquele cujo rosto nos mostraram, naturalmente. Não foi dito como aquelas imagens chegaram às mãos da CBS, nem nós, modestos telespectadores, temos nada com isso, mas o certo é que as imagens da sinistra criatura foram obtidas numa festa de casamento realizada no Iraque. E lá vimos o homem, alegre e risonho, bailando até. O homem que, pelo que nos foi contado, assassinou por mãos alheias não apenas milhares de inocentes mas também um país. Lá estava ele, fresquinho, bem apresentado, com aquele género de bigode que se usa muito na região.

ERA TEMPO

Acerca das tais supostas armas de destruição maciça a reportagem não disse muito e o que disse não foi exageradamente esclarecedor. Pareceu, de qualquer modo, que se tratava de armas químicas ou biológicas que, segundo o tal sujeito confiou aos serviços secretos norte-americanos, estariam a ser fabricadas sob a aparência de tratamento de sementes. Presume-se que, de posse da informação, os serviços secretos exultaram: estava ali a prova do bom fundamento da política norte-americana para com o Iraque, George tinha razão. Adivinha-se que quando o relatório (pois terá havido relatório, estas coisas querem-se formalizadas) chegou à Sala Oval de Washington terá havido uma festa, embora essa parte já não nos tenha sido contada pela reportagem. E, note-se, chegou mesmo em boa altura. Como foi sabido há muito, os planos para a invasão do Iraque estavam concluídos, haviam sido gizados por altura do 11 de Setembro ou mesmo antes. Por outro lado, Bush andaria frustrado, com amargores de boca, porque os Estados Unidos não tinham aproveitado inteiramente o ensejo que lhes havia sido proporcionado pela primeira Guerra do Golfo, aquilo que foi chamado “Tempestade no Deserto”. A coisa estava, pois, decidida. Mas faltava o pretexto, os serviços secretos não andavam nem desandavam, os inspectores da ONU alegavam não encontrar nada de jeito. Segundo a reportagem do 60 Minutos, foi então que surgiu o homem do casamento, ex-empregado da tal fabriqueta que trabalhava com sementes, e enganou os diversos escalões do Império. Foi o mau da fita. Acreditando nele, os norte­‑americanos bombardearam populações civis, saquearam e destruíram monumentos que eram património da humanidade, e fizeram-no com a convicção de estarem a praticar uma boa e desinteressada acção. No fundo, no fundo, esta era a moralidade implícita na reportagem de 60 Minutos, se bem a entendi. Recorro a um estribilho publicitário agora em voga: ele há coisas fantásticas, não há?

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