segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Será que não têm vergonha?

Todos os sábados, o presidente dos Estados Unidos dirige um discurso pela rádio à nação. A seguir, vem a réplica dos democratas, normalmente pronunciada por um senador ou um deputado. No sábado, 24 de Novembro, os democratas escolheram o general na reserva Ricardo Sánchez para pronunciar a resposta, o mesmo general que está acusado de autorizar torturas e maus-tratos cruéis, desumanos e degradantes a prisioneiros no Iraque em pelo menos três processos nos Estados Unidos e na Europa. Isto, acrescentado ao apoio que os democratas deram ao Procurador-Geral da República dos EUA, Michael Mukasey, que se recusou a qualificar como tortura a prática do chamado “submarino” (waterboarding) [1], indica que os democratas estão cada vez mais alinhados com a política de tortura do presidente Bush.

Sánchez dirigiu as operações do exército no Iraque desde Junho de 2003 até Junho de 2004. Em Setembro de 2003, Sánchez emitiu um memorando em que autorizava numerosas técnicas, incluindo «posições forçadas» e o uso de «cães treinados pelo exército» para explorar o «medo dos árabes aos cães» durante os interrogatórios. Sánchez estava à frente do exército quando ocorreram os abusos na prisão de Abu Ghraib.

A brigadeira-general Janis Karpinski, que dirigiu Abu Ghraib durante esse período, trabalhou sob as ordens do general Sánchez. Foi despromovida a coronel, e foi a única oficial militar a ser castigada. Janis Karpinksi falou­‑me de outra prática ilegal, a de manter prisioneiros como «presos fantasmas», como lhes chamam: «Deram­‑nos ordens em várias ocasiões a partir do Pentágono, directamente da parte do Secretário Rumsfeld, através da general Barbara Fast ou do general Sánchez, para que mantivéssemos prisioneiros sem lhes atribuir um número de prisioneiro ou sem os incluir na base de dados, o que vai contra a Convenção de Genebra. Todos sabíamos que contrariava a Convenção de Genebra». Janis Karpinksi também me contou que, para além de manter detidos prisioneiros não incluídos na base de dados, houve outros abusos, como subir a temperatura na prisão até aos 50 ou 60 graus centígrados, a desidratação, bem como a ordem do general Geoffrey Miller para tratar os prisioneiros «como cães».

E não se fica pelo tratamento dos prisioneiros. Em 2006, Karpinski testemunhou num simulacro de julgamento chamado Comissão de Crimes de Bush (Bush Crimes Commission). Revelou que várias militares norte­‑americanas tinham morrido por desidratação ao negarem-se a beber água. As militares tinham medo de ir de noite às latrinas para urinar, por temerem ser violadas pelos seus companheiros soldados: «As mulheres temiam levantar-se de noite para ir às casas de banho ou às latrinas e não bebiam líquidos depois das 3:00 ou 4:00 da tarde. E, com um calor de 50 graus ou mais, já que não havia ar condicionado na maior parte das instalações, morriam por desidratação enquanto dormiam. O que o subcomandante geral de Sánchez, Walter Wojdakowski disse ao médico foi: «Não refira esses detalhes. E especificamente não mencione que são mulheres. Pode incluir estes detalhes num relatório escrito, mas não os comente abertamente daqui para a frente». Karpinski afirmou que Sánchez esteve presente nessa reunião.

O ex-inquiridor do exército Tony Lagouranis, autor de Fear Up Harsh, descreveu o uso dos cães: «Usávamos cães no centro de detenção de Mosul, localizado no aeroporto de Mosul. Púnhamos o prisioneiro num contentor. Mantínhamo­‑lo acordado toda a noite com música e luzes, em posições forçadas, e então mandávamos entrar os cães. O prisioneiro tinha os olhos vendados, para que realmente não percebesse o que se estava a passar, mas nós tínhamos o cão sob controle. O cão ladrava e saltava sobre o prisioneiro, e o preso não chegava a entender o que estava a acontecer».

Reed Brody, da organização Human Rights Watch, deu mais detalhes sobre Sánchez: «Durante esses três meses de caos que tiveram lugar à frente do seu nariz, nunca interveio. Pior, enganou o Congresso dos EUA sobre o caso. Perguntaram-lhe duas vezes durante uma audiência do Congresso se em algum momento tinha aprovado o uso de cães. Isto antes de ser tornado público o seu próprio memorando. E em ambas as ocasiões afirmou que nunca tinha aprovado tal medida. No final conseguimos o memorando, em que aprova textualmente “explorar o medo que os árabes têm aos cães”». Brody desvalorizou o relatório militar que absolve Sánchez de todos os actos ilícitos: «Simplesmente não é credível que o exército continue a investigar­‑se a si próprio e que não deixe de declarar-se inocente».

Não se trata de política partidária. Trata-se do rumo moral do país. Os democratas podem estar a festejar que um general na reserva se tenha voltado contra o seu comandante-em-chefe. Mas o público deveria pensar nisto com muita cautela.

Os democratas tiveram uma oportunidade de estabelecer um precedente, de exigir inequivocamente a Mukasey que condenasse a “técnica do submarino” usada na tortura antes da sua promoção a Procurador-Geral da República. E agora escolheram como seu porta-voz um general desacreditado, ligado aos mais atrozes abusos no Iraque. O governo de Bush livrou-se de promover Sánchez, temendo que se reavivasse o escândalo de Abu Ghraib durante o ano eleitoral de 2006. Agora vêm os democratas ressuscitá-lo. Será que não têm vergonha?

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