quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

12º aniversário do assassinato de Yitzhak Rabin.


O presidente do Parlamento israelense convidou-me a participar na sessão especial de comemoração do 12º aniversário do assassinato de Yitzhak Rabin.

Debati comigo mesmo se deveria aceitar o convite.

Por um lado, gostaria de homenagear o homem e os feitos dos seus últimos anos. Eu gostava dele.

Por outro lado, não sentia nenhuma vontade de ouvir um encómio de Shimon Peres, o homem que pretendeu seguir o caminho que Rabin trilhou e que enterrou o acordo de Oslo por pura covardia. E menos vontade ainda de ouvir um encómio de Ehud Olmert, uma das pessoas que liderou a campanha de incitamento contra o acordo de Oslo e os seus autores. E ainda menos vontade de ouvir um encómio de Binyamin Netanyahu, que assistiu de uma varanda enquanto a fotografia de Rabin em uniforme das SS era exibida em baixo.

No final, decidi manter-me afastado desta orgia de hipocrisia cerimonial. Não fui ao Parlamento. Em vez disso, sentei-me em casa olhando o mar e pensando sobre aquele homem.

Sobre o jovem Yitzhak Rabin, que se alistou no Palmach (“forças regulares” anteriores à independência). O comandante que expulsou os árabes das suas casas na guerra de 1948. O Chefe do Estado­‑Maior que, depois da Guerra dos 6 Dias, nos conclamou a honrar o inimigo morto. O Primeiro Ministro que fez mais pela educação que qualquer dos seus predecessores ou sucessores. O Primeiro Ministro que me autorizou a manter os meus contactos secretos com líderes da OLP, quando isso constituía um crime grave. O Ministro da Defesa que ordenou aos soldados para “quebrarem os seus braços e pernas”, ordem que foi meticulosamente executada. O homem que reconheceu a OLP e apertou a mão de Yasser Arafat.

Era tudo isto, e a lista continua.

Acima de tudo, Rabin era o típico representante de uma geração, a “geração de 1948” – e não por acaso esta geração foi definida pela guerra. Era o tempo da inocência. A inocência dos combatentes e da Yishuv (a sociedade hebraica na Palestina do pré-Estado). Em retrospectiva, os eventos daquele tempo – as acções das organizações clandestinas, as operações da guerra – assumem aspecto diferente, um quadro com muitas sombras. Mas é preciso lembrar: não foi assim que pareceram quando aconteceram. De todo.

Rabin personificou a inocência da geração que acreditava de todo o coração que sacrificavam a vida pela mais justa das causas – a existência do Yishuv, a salvação dos judeus da Europa, a nossa luta pela independência nacional. Sem essa crença absoluta, somada à total ignorância sobre o outro lado, não teríamos sobrevivido ao teste de 1948 – um teste no qual uma proporção significativa do nosso grupo etário foi morta ou ferida.

Esta geração idealizou um certo tipo de personalidade – o “Sabra” (literalmente: pereira cheia espinhos), uma figura mítica que teve uma imensa influência em moldar aquela geração. (Eu próprio desempenhei algum papel a alimentar este mito). O “Sabra” devia ser recto, tanto fisicamente como mentalmente, livre dos complexos dos judeus “do exílio” (o termo “exílico” era o mais grave insulto no nosso léxico). O “Sabra” era honesto, verdadeiro, prático, natural, alguém que ia directo ao assunto e desprezava maneirismos ocos, conversa fiada e frases grandiloquentes, o que nós chamávamos coloquialmente de “sionismo”. Antes de sabermos sobre o Holocausto, judeus “do exílio” e tudo o que estivesse a eles ligado era tratado com desdém, até desprezo.

A pouco e pouco, surgiu uma clara distinção terminológica: a Yushuv “hebraica” e a religião “judaica”; o kibbutz “hebreu” e o shtetl “judeu” (na Diáspora), trabalhismo “hebreu” (como no nome da organização sindical então dominante, “a Organização Geral dos Trabalhadores Hebreus em Eretz-Yisrael”) e luft-gesheften (“transações nebulosas” em ídiche) “judeu”; trabalhadores “hebreus” e especuladores “judeus”.

Yitzhak Rabin foi o Sabra definitivo: um jovem bem­‑parecido que sacrificou a sua ambição pessoal (para estudar engenharia hidráulica) para servir a nação, combater e comandar combatentes, agir e deixar a discussão da ideologia para os mais velhos.

Tinha a reputação de possuir uma “mente analítica” devido à sua capacidade de examinar uma dada situação e encontrar soluções práticas. A outra face da moeda era a sua falta de imaginação. Lidava com a realidade, e não podia imaginar uma realidade diferente. (Abba Eban, que o odiava, disse-me de forma maliciosa: «Analisar significa dissecar. Rabin consegue separar as coisas, mas não consegue voltar a juntá-las.»)

Era reservado, talvez tímido, e evitava o contacto físico, as palmadinhas nas costas e os abraços públicos. Alguns chamavam­‑lhe “autista”. Mas não era afectado, e certamente não era arrogante. Depois de alguns copos (sempre Scotch) abria-se um pouco e, em festas, conseguia sorrir o seu sorriso algo enviesado e tornar­‑se bastante amigável.

Se tivesse morrido em 1970, seria lembrado apenas como soldado, um bem-sucedido comandante de brigada na guerra de 1948, o melhor Chefe do Estado-maior que o exército de Israel jamais teve, o arquitecto da incrível vitória da Guerra dos Seis Dias. Mas esse foi apenas um capítulo na sua vida cheia de acontecimentos. Algo raro aconteceu: aos 70 anos, fez algo que mesmo pessoas de 30 anos são geralmente incapazes de fazer: mudou completamente a sua visão do mundo e abandonou as certezas que, até ali, tinham governado a sua vida.

Fui testemunha dessa surpreendente mudança. Em 1969, quando ele servia como embaixador de Israel em Washington, conversamos pela primeira vez sobre a questão palestiniana. Rejeitou completamente a ideia de paz com os palestinianos. Ainda me lembro de uma frase dele nessa conversa: «Não quero saber de fronteiras seguras, quero fronteiras abertas.» (Um jogo de palavras, em hebraico: batuach significa seguras, patuach significa abertas.) “Fronteiras seguras” era, então, a palavra de ordem dos anexionistas. Rabin queria dizer uma fronteira aberta com a Jordânia, e certa vez disse: «Não quero saber se preciso de visto para ir a Hebron.»

Depois disso, encontramo­‑nos de tempos em tempos – no seu escritório, na residência do Primeiro Ministro, na sua casa particular e em festas – e a conversa voltava sempre à questão palestiniana. A atitude dele permaneceu negativa.

Por isso sei quão extrema foi a mudança. Não acredito que tenha sido eu a influenciá­‑lo – quando muito plantei, talvez, algumas sementes. Ele próprio me explicou, mais tarde, a mudança como uma série de deduções lógicas: quando era Ministro da Defesa, encontrara­­‑se com personalidades palestinianas locais. Em conversas a dois, eram cordatos, mas quando estavam em grupo, eram duros e diziam­‑lhe que recebiam instruções da OLP. Depois disso veio a conferência de Madrid. Israel cedeu à pressão e concordou negociar com uma delegação jordana que incluía elementos palestinianos. Uma vez lá, os jordanos recusaram-se a lidar com questões palestinas, e assim os palestinos tornaram-se, na prática, uma delegação palestiniana independente. Feisal Husseini, o verdadeiro líder, não teve permissão de entrar no salão de conferências porque era de Jerusalém. Os delegados iam à outra sala de tempos em tempos para consultá-lo e, no final de cada dia, diziam aos israelenses que tinham de telefonar a Tunis, para receber instruções de Yasser Arafat.

«Isso tornou-se demasiado ridículo para mim», disse-me Rabin à sua maneira directa, «Se tudo depende de Arafat de qualquer modo, por que não falar com ele directamente?»

Esse era o contexto de Oslo.

Como é que o barco de Oslo de Rabin ficou encalhado?

Penso que boa parte da responsabilidade reside no próprio Rabin. Ele realmente queria fazer a paz com os palestinianos. Mas perante os seus olhos não via nenhum caminho para o objectivo, nem uma imagem clara do próprio objectivo. A mudança era demasiado aguda. Como a sociedade israelense em geral, ele foi incapaz de se libertar a si próprio, da noite para o dia, de medos, desconfianças, superstições e preconceitos acumulados ao longo de 120 anos de conflito.

Essa é a razão por que não fez a única coisa que poderia ter conduzido o barco de Oslo a um porto seguro: aproveitar o momento e alcançar a paz num movimento rápido e firme. Não conhecia o famoso dito de David Lloyd­‑George relativo à paz com a Irlanda: «Não se pode cruzar um abismo com dois saltos».

A formação da sua personalidade teve um impacto negativo sobre o processo. Era, por natureza, cauteloso, lento, avesso aos gestos dramáticos (ao contrário de Menachem Begin, por exemplo). Isto resultou na fragilidade fatal do acordo de Oslo: o objectivo final não foi declarado. As duas palavras decisivas – “Estado Palestino” – não aparecem de todo. Esta omissão levou ao seu colapso.

Enquanto os dois lados consumiram meses e anos às voltas com cada mínimo detalhe dos infindáveis passos “intermédios”, as forças opostas à paz em Israel tiveram tempo de recuperar e unir-se. Liderados pelos colonos e pela ultra-direita, foram sustentadas pelos ódios e pelas ansiedades alimentados pela longa guerra.

Em termos militares: Rabin foi como um general que consegue romper a frente – e, em vez de introduzir os seus soldados pela brecha e forçar uma decisão, hesita e fica no mesmo sítio, permitindo às forças adversárias reagruparem­‑se e formar uma nova frente. Em outras palavras, ele destroçou as forças da guerra, mas permitiu­‑lhes reunirem‑se e preparar um contra-ataque.

Ele pagou com a sua vida por isso.

O assassinato de Rabin mudou a história de Israel, tal como o assassinato do príncipe austríaco em Sarajevo, em 1914, mudou a história do mundo.

Diz-se que ninguém é insubstituível, mas ainda não se encontrou um segundo Rabin – ninguém com a sua honestidade, com a sua coragem, com o seu pensamento lógico.

Esta semana, Ehud Olmert declarou que prosseguia no caminho de Rabin, mas ele representa o completo oposto: o oposto da honestidade, o oposto da coragem, o oposto da lógica (para não mencionar a sua propensão para abraçar as pessoas e golpeá­‑las pelas costas).

Rabin queria realmente avançar no sentido da paz. Muito, muito lentamente, com regateio teimoso, mas também com consistência e persistência. Os objetivos de Olmert são inteiramente diferentes. Ele quer um “processo de paz” que não tem fim – tagarelice, encontros, conferências, sem qualquer movimento, enquanto entretanto a ocupação prossegue, a anexação se arrasta para diante, os colonatos crescem e as esperanças e as oportunidades para os dois povos se evaporam.

A conferência de Annapolis encaixa-se perfeitamente neste esquema: declarações vazias, outra conferência sem resultados, uma exibição sem sentido.

Há quem diga que o mais importante é conversar, porque “quem conversa não dá tiros”. Essa é uma ilusão perigosa. No nosso caso, é verdade o oposto: enquanto se conversa por conversar enquanto a ocupação se aprofunda, o desespero ganha terreno e o tiroteio nunca parou realmente. O fracasso de Annapolis pode muito bem desencadear a erupção da Terceira Intifada.

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