sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Ciência fora de controle


A equipa do famoso e polémico genetista Craig Venter tornou público na sexta-feira, 25 de Janeiro, através de um artigo na revista Science, que tinha conseguido construir artificialmente o genoma completo de uma bactéria, usando o que se denomina “biologia sintética”. Trata-se de uma bactéria – mycoplasma genitalium –, que foi seleccionada entre todos os organismos que já se sequenciaram, por ter a menor quantidade de genes. Só para entender do que estamos a falar: são genes construídos artificialmente e depois ensamblados usando como guia o mapa do sequenciamento do dito organismo.

A meta do Instituto Venter e de outros que trabalham em biologia sintética não é replicar o que já existe na natureza, mas criar organismos vivos com funções diferentes das que existem que, afirmam, se poderiam usar à escala comercial para produzir drogas farmacêuticas ou novos combustíveis. Mas o que implica libertar para o ambiente organismos vivos artificiais é totalmente impredizível. Por exemplo, existe a possibilidade –reconhecida pelos próprios cientistas que trabalham na área – de que sejam usados como armas biológicas, com efeitos devastadores.

Não é a primeira vez que se sintetiza um microrganismo desde zero, já o tinha feito pela primeira vez em 2002 uma equipa do Instituto Stony Brooks da Universidade do Estado de Nova Iorque. Esta equipa levou mais de dois anos a construir o vírus da poliomielite, que tem aproximadamente 7 mil 500 bases ou nucleótidos. Os nucleótidos são os componentes básicos que formam os genes de todos os seres vivos: denominam-se adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C). O próprio Venter sintetizou também um vírus em 2003, com mais de 30 mil pares de bases, mas demorou apenas 14 dias. Posteriormente outros pesquisadores construíram sinteticamente outros vírus, como o da gripe de 1918 que estava extinto. Para construir a bactéria anunciada agora pelo Instituto Venter, foram ensamblados 582 mil 970 pares de bases. Os vírus são organismos que dependem de outros seres vivos para proliferar; uma bactéria, em contrapartida, pode reproduzir­‑se sem a intervenção de outros organismos vivos, pelo que se multiplicam os riscos potenciais. O artigo na Science admite que esta bactéria não é ainda totalmente funcional.

Por quê, então, publicá­‑lo agora? Simplesmente porque Craig Venter e a sua equipa trabalham tanto em ciência como no comércio e na promoção dos seus produtos, e estão ansiosos de mostrar ao mundo que são “os primeiros”. E não só por razões de prestígio no pequeno mundo dos cientistas, mas porque a cada passo que o Instituto Venter dá, é precedido de agressivas medidas comerciais: já antes de conseguir o resultado, existiam sobre este e outros organismos artificiais nos quais trabalham, solicitações de patentes monopólicas. Algumas tão abarcadoras que impediriam ou dificultariam seriamente que outros pudessem investigar no mesmo campo.

O tema das patentes nas novas tecnologias é apenas um mais dos muitos aspectos controversos das novas tecnologias. O principal é a ausência quase total de debate social amplo e informado sobre os múltiplos impactos potenciais éticos, económicos, ambientais e para a saúde que estas implicam e a ausência total de supervisão social independente às quais deveriam ser submetidas. Isto deveria também levar a uma regulação estrita, se é que a partir dessa análise e debate social se concluísse que estas tecnologias são realmente úteis e necessárias, o que não é de todo óbvio.

À falta deste debate social amplo, é lamentável que na maioria dos meios de comunicação de massas, e não apenas na imprensa científica, praticamente qualquer “avanço” científico se relate automaticamente como algo notável e digno de admiração, geralmente descontextualizado dos seus impactos potenciais e das realidades económicas, sociais e políticas que vivemos, bem como do modelo tecnológico elitista e privatizador que em muitos casos lhes subjaz.

Estas falhas não impedem, é claro, que haja milhares de cientistas no mundo a tratar de construir vida artificial, e se possível antes de existir melhor controle social. Aliás, a proposta daqueles que trabalham em biologia sintética é que haja “códigos voluntários de controle”, em lugar de regulação externa independente.

Face a este novo anúncio de Craig Venter, Kathy Jo Wetter, do Grupo ETC, declarou que «Ainda que o Instituto Venter reconheça que esta versão de um organismo vivo sintético que chamou “versão 1.0” não funciona de tudo, a sociedade não deve esperar que haja uma versão “melhorada”, porque o que está em jogo é realmente grave. As implicações ecológicas, éticas, sociais e económicas são vastas e a sociedade não está preparada para isso em absoluto». Por esta razão, o Grupo ETC produziu uma série de materiais informativos sobre a biologia sintética (disponíveis em http://www.etcgroup.org/), reafirmando simultaneamente o apelo feito juntamente com 38 organizações da sociedade civil (ambientalistas, sindicalistas, expecialistas em armas biológicas e cientistas preocupados) para estabelecer urgentemente uma moratória internacional a esta tecnologia. (Ver o apelo e material de contexto em www.etcgroup.org/es/materiales/publicaciones.html?pub_id=6)

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