segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A dignidade mapuche interpela­‑nos


Raúl Zibechi *
ALAI

(Depois de 110 dias em greve de fome, a comunera mapuche Patricia Troncoso Robles decidiu ontem, dia 28 de Janeiro, pôr fim à medida de pressão. O governo de Bachelet acedeu às suas demandas reivindicadas para si mesma e para outras duas pessoas – Juan Millalen e Jaime Marileo –, que incluem benefícios carcerários como saídas durante os fins de semana a contar de Março, sem avaliação prévia da gendarmaria. Várias vozes no interior do Chile e à escala internacional pedem que se ponha fim à criminalização do povo mapuche e que se procure uma solução profunda para as suas reivindicações).

«Se a minha morte servir para a liberdade dos meus irmãos, eu não vou desistir», escreveu Patricia Troncoso a 23 de Dezembro quando levava 74 dias em greve de fome na prisão de Angol, no sul chileno. Logo foi transferida para Chillán e na terça-feira passada foi-lhe administrado, contra a sua vontade, soro intravenoso para mantê-la com vida. Patricia leva mais de cem dias de jejum e o seu estado de saúde é muito delicado.

Desta vez, a repressão não conseguiu isolar a luta mapuche. Nestes quase quatro meses desenvolveram­‑se mobilizações em várias cidades do Chile, inclusive na capital, Santiago. No dia 12 de Novembro, uma delegação de parlamentares venezuelanos visitou a prisão de Angol e manifestou a sua preocupação pelo estado de saúde dos presos. A Amnistia Internacional enviou uma carta à presidenta Bachelet, a 21 de Janeiro, pedindo pela vida de Patricia e recordando que em 2003 o Relator Especial das Nações Unidas apresentou um relatório da sua missão ao Chile no qual recomendava que «além da outorgação de títulos sobre terrenos privados, os territórios tradicionais que incluam recursos de uso comunitário devem ser reclamados e restabelecidos».

Uma missão de dez organizações de direitos humanos e a central de trabalhadores (CUT) realizaram uma missão de observação, no início de Janeiro, depois do assassinato do jovem mapuche Matías Catrileo, que as levou a denunciar «a brutalidade, a selvajaria e o terrorismo de Estado» sofrido pelas comunidades. Arturo Martínez, presidente da CUT, assinalou que este conflito não se resolve com balas e repressão e, algo inédito na central sindical depois da ditadura, afirmou: «Os mapuche podem contar connosco. O seu direito sagrado à terra merece ser apoiado».

No dia 10 de Janeiro foi difundida uma Declaração de Historiadores do Chile, na qual se denuncia «a virtual militarização do território histórico do povo mapuche» e «a instauração de um regime permanente de vigilância e terror policial». Os historiadores, entre os quais figura o Prémio Nacional de História, Gabriel Salazar, apontam contra a criminalização da luta mapuche e a aplicação da Lei Antiterrorista herdada da ditadura militar, bem como contra o cerco mediático que sofrem. Concluem assinalando que o Estado chileno deve reconhecer «a autonomia política das comunidades indígenas, a devolução das suas terras arbitrariamente usurpadas com base no “direito de Conquista” e o pleno respeito pelos direitos humanos dos seus integrantes».

Em segundo lugar, a greve de fome – que faz parte de uma nova onda de mobilização mapuche – promoveu uma maior coordenação e articulação entre as diversas organizações políticas, sociais e culturais do mundo mapuche. Ambos os factos, a solidariedade nacional e internacional e a crescente convergência organizativa do universo mapuche, são os dados mais esperançosos da oferenda de Patricia Troncoso.

Sob os governos do Acordo Democrático (desde 1990) foram processados 400 mapuche por meio da Lei de Segurança Interna ou da Lei Antiterrorista. Esta foi a resposta ao ciclo de lutas aberto em 1997 através do estalido de múltiplos conflitos que afectam as grandes empresas florestais e de energia. O movimento despregou iniciativas culturais, artísticas e de meios de comunicação próprios e conseguiu recuperar terras, a tal ponto que os fundos estatais de compras de terras para as comunidades tiveram de passar de uns 5 milhões de dólares em 1995 para mais de 30 milhões em 2001.

No âmbito do clima gerado pelos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, começou-se a aplicar a Lei Antiterrorista. Entre Novembro de 2001 e Outubro de 2003 foram processados 209 mapuche só na região da Araucanía, enquanto centenas eram detidos em manifestações, golpeados e maltratados no que, segundo múltiplos observadores, foi uma verdadeira “guerra suja”. Patricia Troncoso foi processada por ter participado, em Dezembro de 2001, no incêndio de cem hectares de pinheiros da Empresa Florestal Mininco.

Quem quer que tenha visitado as comunidades mapuche do sul, pode comprovar que estão a ser acantonadas e exterminadas por um mar de cultivos florestais que arrasam as suas terras e as impede de continuar a semear e a produzir a sua sobrevivência. Pior ainda: as comunidades são pacificadas sem ordem judicial pela polícia com armamento de guerra, e existem comandos, como o “Hernán Trizano”, que realizam incursões nocturnas com disparos enquanto se instalam câmaras de vigilância e aparelhos que interferem com os telemóveis. As organizações de direitos humanos asseguram que carabineiros se vestem à civil para realizarem incursões e amedrontamentos. Quem pratica o terrorismo?

O governo de Bachelet teve todo este tempo um comportamento vergonhoso. Tem razão Patricia quando diz na sua carta: «Que podemos esperar dos nossos verdugos, se provêm de uma geração que viveu todos estes flagelos e com o tempo se desumanizaram ao ponto de esquecer o exílio, as torturas, a perseguição e a morte de tantos seres humanos?»

Agora que a decisão e a coragem de Patricia e de um punhado de mapuche se saldou com um ressonante e histórico triunfo, pode ser a hora das perguntas incómodas. Que está a acontecer­‑nos? Quantas vezes têm os que estão mais abaixo que oferendar as suas vidas – que em definitivo são a única coisa que têm – para que os de baixo reajam, reajamos, e gritemos juntos um “Já Chega!” capaz de travar a ambição genocida de poder dos de cima?

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* Raúl Zibechi é membro do Conselho de Redacção do semanário Brecha de Montevideo, professor e investigador sobre movimentos sociais na Multiversidad Franciscana de América Latina, e assessor de vários grupos sociais.

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