sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Camponeses e zapatistas: a estratégia do caracol

Silvia Ribeiro *
La Jornada

Quando os comuneros zapatistas se despedem de alguém que conheceram e estimam, dizem­‑lhe: “que este encontro não seja o primeiro nem o último”. Assim foi, efectivamente, a reunião entre as comunidades zapatistas e as organizações da Via Campesina que teve recentemente lugar em Chiapas. Um encontro que vem de diversos tempos e espaços e que, como ribeiros que convergem a partir do subsolo, das montanhas ou dos bosques, se encontram para formar remansos, mananciais, rios e mares logo convertidos em chuva, e percorrem o mundo e voltam a ser solo, sementes, bosque, entranhas da terra.

O manancial desta vez surgiu no contexto do segundo Encontro dos Povos Zapatistas com os Povos do Mundo, realizado no final de Julho nos caracoles zapatistas em Chiapas, onde organizações da Via Campesina da Ásia, da América e da Europa ouviram os depoimentos de mulheres, homens, crianças, jovens e idosos dos cinco caracoles zapatistas sobre as condições de extrema exploração em que viviam antes do seu levantamento em 1994, sobre a resistência colectiva e os 13 anos de construção da autonomia indígena.

Os convocantes abriram um espaço especial no seu programa para que se apresentassem as organizações da Via Campesina. Fizeram-no na linguagem dos anfitriões: compartilhando as suas canções, sonhos, histórias e realidades, da Tailândia, Índia, Indonésia e Coreia do Sul até ao Brasil, Canadá e outros países, sem esquecer os trabalhadores rurais migrantes, ferida que sangra o México e tantas outras nações.

As realidades e os depoimentos dos zapatistas e dos outros camponeses foram-se entretecendo, rompendo a ilusão da fragmentação, mostrando como a opressão tem faces similares e complementares por todo o globo. Por todo o lado assolam as mesmas transnacionais – como a Monsanto, a Cargill, a ADM, a Coca Cola, a Nestlé, a Wal­‑Mart e outras –, que expulsam camponeses e indígenas, engolindo terra, água e gente, com monocultivos de soja, eucalipto, cana de açúcar e transgénicos, agora além disso com renovados apoios estatais pelo impulso às empresas de agrocombustíveis.

A estes despojos acresce que os governos, com a coarctada das grandes organizações não governamentais (ONG) “conservacionistas”, querem expulsar os camponeses e indígenas tanto da Tailândia como do México ou da Indonésia, convertendo os seus territórios em supostas “áreas protegidas”.

Para essas ONG e as transnacionais isso é um grande negócio, desconhecendo de passagem que são os indígenas e camponeses quem têm não só o direito, mas também o conhecimento e a experiência milenar para cuidar realmente de bosques, terras e água.

Tal como se quis fazer em San Salvador Atenco, membros da União de Camponeses da Índia foram expulsos da sua parcela para construir o aeroporto de Nova Deli. Também na Tailândia, como no Brasil, a construção de grandes represas e os projectos mineiros são implementados à custa da vida de indígenas e camponeses. As políticas de “reforma agrária de mercado” impostas pelo Banco Mundial – das quais o Procede é uma versão mexicana – são outro recurso manhoso para despojar os camponeses das suas terras em muitos lugares.

Na Ásia como na América Latina, os “programas de apoio” aos camponeses são apenas esmolas para os manter controlados e divididos, bem como para introduzir agrotóxicos e sementes industriais; os sistemas educativos desprezam o que é camponês e indígena; os sistemas de saúde discriminam­‑nos, e quando requerem cuidados, muitas vezes são maltratados ou nem sequer são assistidos e morrem na espera, como recentemente aconteceu em Huejuquilla a uma rapariga huichola.

Mas também e, sobretudo, entretecem­‑se as histórias da resistência. A contundência da autonomia zapatista marcou uma impressão profunda nos delegados e delegadas da Via Campesina: desde as palavras de jovens que cresceram nos 13 anos de “outro mundo” – não só “possível”, mas real – e agora são as encarregadas de muitas tarefas, ao tecido dos trabalhos colectivos, às autoridades que realmente “mandam obedecendo” –porque o povo as pode revogar em qualquer momento –, aos sistemas autogestionários de saúde e educação. Também as lutas da Via Campesina encontraram um reflexo de empatia e calor nas comunidades zapatistas: «sofremos as mesmas coisas, temos as mesmas lutas, é muito o que podemos fazer», expressou um colega do caracol de Morelia. O movimento zapatista foi um grande espelho que ocasionou que em todo o mundo os movimentos entendam a sua própria situação ao reflectir­‑se na luta dos outros. Agora os camponeses da Tailândia, Índia, Brasil devolvem­‑lhe a imagem.

Por tudo isto, este encontro não foi o primeiro: para além das pessoas e organizações concretas, o que se encontra a si mesmo em outras e outros são as formas de vida camponesa e indígena, que desde a sua complexidade e singeleza, desde a sua forma de estar no mundo com a terra, as sementes, a água, a natureza, sempre foram e continuam a ser a base fundamental de toda a vida humana no planeta, incluindo as bases de toda a alimentação e medicamentos de que depois as transnacionais se apropriam, industrializam e vomitam no mercado.

Além disso, é um encontro significativo, porque tanto o zapatismo como a Via Campesina, em diversas formas que podem convergir, propõem visões e acções que vão para além do discurso quase decorativo de muitos foros internacionais. Há muito caminho por andar, mas sem dúvida este encontro, que também não será o último, é um vento de esperança.

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