quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Tratado reformador da UE: inaceitável pelo método e pelo conteúdo


Várias centenas de páginas com 297 modificações dos tratados existentes, doze protocolos e algumas dezenas de projectos de declarações, com o mesmo valor jurídico dos tratados, assim se apresenta o “tratado reformador” da União Europeia. Não se tratará aqui de fazer um comentário exaustivo, um certo número de assuntos voluntariamente não serão tratados, mas de indicar alguns pontos e de fazer uma apreciação de conjunto.

UM MÉTODO CONTRÁRIO A QUALQUER DEBATE DEMOCRÁTICO

A declaração comum dos governos da União, adoptada em Berlim durante as comemorações do cinquentenário do Tratado de Roma, fixava como objectivo «até às eleições para o Parlamento Europeu de 2009, dotar a União Europeia de uma base comum e renovada». Portanto, tudo devia ser feito para que as eleições europeias não fossem um momento de debate político sobre o futuro da União. O Conselho europeu tem reproduzido os piores momentos da construção europeia, dando o espectáculo de uma negociação à porta fechada em que, uma vez mais, os termos escapam aos cidadãos da União.

Um mês depois, a presidência portuguesa apresenta um projecto que deve ser adoptado a 18 e 19 de Outubro pelo Conselho. Em apenas dois meses tudo estará terminado. A rapidez com que este processo foi concluído diz muito sobre a concepção de Europa e de democracia que anima os dirigentes europeus. O duplo “não”, francês e holandês, ao TCE (Tratado Constitucional Europeu) era, entre outras coisas, uma recusa do método com que a Europa tinha sido construída: negociação secreta entre Estados, ausência de transparência sobre o conteúdo das propostas, recusa do debate público.

Poderíamos pensar que, após o episódio do Tratado Constitucional Europeu (TCE), os governos iam, pelo menos, não reproduzir de novo este tipo de comportamentos. Foi o contrário que teve lugar, assistimos a uma vontade de excluir os cidadãos do debate sobre o futuro da União. Visivelmente o duplo “não”, francês e holandês, assustou de tal forma os dirigentes europeus, que eles já não querem assumir o mais pequeno risco: tudo deve ser feito muito rapidamente para ultrapassar uma eventual reacção cidadã. E evidentemente, podem contar­‑se pelos dedos de uma mão os governos que ousarão ratificar um tal tratado por referendo. A França não fará parte deles, decidiu já o novo Presidente da República.

Este método é inaceitável e vai contra as exigências de numerosos movimentos de cidadãos na Europa como, por exemplo, os ATTAC da Europa, que preconizam que uma «assembleia nova e democrática, eleita directamente pelos cidadãos de todos os Estados membros, seja mandatada para elaborar um novo projecto de tratado, com a participação efectiva dos Parlamentos nacionais» e que «qualquer novo tratado deve ser submetido a referendo em todos os Estados membros».

UM CONTEÚDO NA CONTINUIDADE DAS ORIENTAÇÕES ANTERIORES

O “tratado reformador” modifica os dois tratados existentes, o Tratado da União Europeia (TUE) e o tratado que institui a comunidade europeia que toma o nome de “Tratado sobre o funcionamento da União Europeia” (TFUE). Recordemos que o tratado da União Europeia é o tratado de Maastricht, modificado pelos de Amsterdão e Nice, e que o tratado que institui a comunidade europeia é o de Roma, modificado pelos sucessivos tratados desde 1957.

O preâmbulo do TUE foi modificado pela adição de um considerando que indica que a União se deve inspirar na herança religiosa da Europa. Se uma tal referência persistir, será uma vitória para as correntes obscurantistas e um recuo ideológico muito importante. Devemos exigir do Presidente da França que vete uma tal formulação em contradição com o princípio da laicidade.

CONCORRÊNCIA

A imprensa divulgou amplamente o “sucesso” alcançado por Nicolas Sarkozy, que conseguiu que a expressão “concorrência livre e não falseada” deixasse de ser um objectivo da União. Trata-se certamente de uma vitória simbólica dos partidários do “não” ao TCE e as vitórias simbólicas não são negligenciáveis, porque legitimam um combate. Este facto terá alguma consequência concreta?

O princípio da concorrência continua presente em numerosos artigos dos tratados. Citamos como exemplo o artigo 105, mantido no TFUE, que afirma «o princípio de uma economia de mercado aberto em que a concorrência é livre». Ele está no centro da maior parte dos actos legislativos europeus, que continuam em vigor, nomeadamente nos que liberalizam os serviços públicos.

Enfim, para evitar qualquer falsa interpretação, o protocolo n.º 6 recorda claramente o princípio aplicável na matéria: «o mercado interno tal como é definido no artigo 3º do tratado da União Europeia compreende um sistema que garante que a concorrência não é falseada».

O artigo 3º trata dos objectivos da União. É assim que a concorrência não falseada é reintroduzida nos objectivos da União, de onde parecia ter desaparecido. Para completar o nó, e mostrar que não se trata de um objectivo teórico, o protocolo n.º 6 indica que, a este respeito, «a União tomará medidas ao abrigo do disposto nos tratados».

A força do direito da concorrência continua a ser idêntica. Ele continua a ser o direito organizador da União, um direito normativo, verdadeiro direito “constitucional”, que reduz, na maior parte das vezes, os outros textos europeus a declarações de intenção, sem alcance operacional prático.

Uma modificação do artigo 93 do TFUE, que trata da harmonização fiscal, das legislações relativas aos impostos sobre o volume de negócios, indica que esta harmonização deve ser feita, afim de «evitar as distorções de concorrência». No entanto, este procedimento de harmonização continua submetido à unanimidade dos Estados. Para além do facto de ser necessário definir em que sentido ela se devia fazer, já que certos Estados não têm impostos sobre as empresas, uma tal harmonização está longe de se concretizar.

POLÍTICA COMERCIAL/CIRCULAÇÃO DOS CAPITAIS

A política comercial da União determina como objectivo «incentivar a integração de todos os países na economia mundial, inclusivamente através da eliminação progressiva dos obstáculos ao comércio internacional» (novo artigo 10A TUE). O comércio livre generalizado continua a ser o horizonte inultrapassável das políticas europeias.

Este objectivo é afirmado de maneira alargada pelo artigo 188 B do TFUE que indica que a União «contribui (...) para a supressão progressiva das restrições às trocas internacionais e aos investimentos estrangeiros directos e para a redução das barreiras alfandegárias e de outro tipo». Este artigo modifica a redacção actual no sentido de uma liberalização ainda maior: «os investimentos estrangeiros directos» e a referência «de outro tipo» não apareciam no artigo inicial. Esta última expressão refere-se aos «obstáculos não tarifários ao comércio», tais como as normas ambientais ou a protecção dos consumidores, que são o alvo das políticas de liberalização conduzidas pela OMC.

A unanimidade dos Estados é requerida para a conclusão de acordos comerciais no «domínio do comércio de serviços culturais e audiovisuais, sempre que esses acordos sejam susceptíveis de prejudicar a diversidade cultural e linguística da União» e «no domínio do comércio de serviços sociais, educativos e de saúde, sempre que esses acordos sejam susceptíveis de causar graves perturbações na organização desses serviços ao nível nacional». Uma questão permanece entretanto sem resposta: quem vai decidir que os riscos evocados existem?

O tratado reformador não toca evidentemente na liberdade de circulação dos capitais, não só entre os Estados, mas também entre estes e países terceiros (art.º 56 TFUE) e a unanimidade dos Estados continua a ser necessária para qualquer medida que vise restringir a liberalização dos movimentos de capitais (art.º 57­‑3 TFUE).

PAPEL DO BCE/POLÍTICA ECONÓMICA

A estabilidade dos preços faz agora parte dos objectivos da União (art.º 3 TUE alterado). No TUE actual, a estabilidade dos preços não estava entre os objectivos da União. Era apenas um objectivo do Banco Central Europeu (BCE), indicado no artigo 105 do tratado que institui a comunidade europeia. Se a sua inclusão como objectivo da União não muda nada na prática, não deixa de ser simbólica, tanto mais que nada é dito a respeito da inflação dos activos financeiros, que é uma das causas dos desfuncionamentos da economia mundial. Este artigo 105 é mantido no TFUE e, além disso, um novo artigo 245 A, tratando do BCE, reafirma ainda este objectivo, funcionando como um segundo travão para o caso de ser necessário.

A independência do BCE é, evidentemente, mantida (art.º 108 TFUE) e terá como único objectivo a manutenção da estabilidade dos preços, contrariamente aos outros bancos centrais.

A Declaração 15 reafirma «o seu empenhamento [da CIG] nos objectivos da estratégia de Lisboa» e preconiza o reforço da competitividade. Convida a uma «reestruturação das receitas e das despesas públicas, sem deixar de respeitar a disciplina orçamental, nos termos dos Tratados e do Pacto de Estabilidade e Crescimento». Fixa como objectivo «obter progressivamente um excedente orçamental nos períodos de conjuntura favorável». Em resumo, o dogma neoliberal habitual, agravado pelo objectivo de atingir um excedente orçamental.

POLÍTICA DE SEGURANÇA E DE DEFESA

A defesa comum da União é encarada apenas no quadro da NATO. A ligação à NATO é reforçada. A formulação actual (art.º 17-4 TUE) indica que a cooperação no quadro da NATO não pode ter lugar senão «na medida em que essa cooperação não contrarie nem dificulte a cooperação prevista no presente título». A nova formulação liga ainda mais estreitamente uma futura defesa europeia à NATO: «Os compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que, para os Estados que são membros desta organização, continua a ser o fundamento da sua defesa colectiva e a instância apropriada para a concretizar» (futuro artigo 27-7 TUE).

O protocolo n.º 4 fecha o círculo, «recordando que a política comum de segurança e defesa da União respeita as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte» e «que um papel mais assertivo da União em matéria de segurança e de defesa contribuirá para a vitalidade de uma Aliança Atlântica renovada».

O militarismo é oficialmente encorajado. «Os Estados membros comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares» (futuro art. 27-3 TUE). Este deve ser o único local em que o tratado encoraja os Estados a aumentar as suas despesas públicas!

Em nome da luta contra o terrorismo, as intervenções militares no estrangeiro são encorajadas: «Todas estas missões podem contribuir para a luta contra o terrorismo, inclusive mediante o apoio prestado a países terceiros para combater o terrorismo no respectivo território» (futuro art.º 28 TUE). Este artigo autoriza, de facto, todas as aventuras militares.

CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Carta dos Direitos Fundamentais não foi integrada no tratado reformador. A Declaração n.º 11 indica que ela «será proclamada solenemente pelo Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão no dia da assinatura» dos dois tratados modificados. Esta mesma declaração retoma o texto. O artigo 6 do TUE sobre os direitos fundamentais foi reescrito para lá integrar a sua existência que «tem o mesmo valor jurídico que os tratados». A Carta será portanto «juridicamente vinculativa» (Declaração 29). O problema é saber até que ponto.

De facto, os direitos sociais que lá estão contidos são de muito fraco alcance. Assim, o direito ao trabalho e ao emprego não existe e apenas aparece o «direito a trabalhar». O direito à protecção social é substituído por um mero «direito de acesso às prestações da segurança social e aos serviços sociais». Este texto é mais recuado que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e que a Constituição francesa. Esta última afirma que «todos têm o direito de obter um emprego» e que «(a nação) garante a todos a protecção da saúde, a segurança material». Certamente que, para serem aplicados, estes direitos exigem um combate diário, mas têm o mérito de existir.

Outros assuntos põem ainda mais problemas. O direito ao aborto e à contracepção não são reconhecidos pela Carta. Neste quadro, pode-se temer que a reafirmação do “direito à vida” seja utilizada por alguns para contestar aqueles direitos no Tribunal de Justiça.

No essencial, a aplicação dos direitos contidos nesta Carta é transferida para «as práticas e legislações nacionais». Fundamentalmente, esta carta não cria direito social europeu susceptível de reequilibrar o direito da concorrência, que continuará dominante à escala europeia. Mais ainda, se for considerado “necessário” podem ser invocadas limitações a estes direitos.

Por outro lado, para prevenir qualquer possível derrapagem, o seu alcance é explicitamente restringido. O texto indica que ela «não alarga o âmbito de aplicação do direito da União a domínios que não sejam da competência da União, não cria quaisquer novas competências ou atribuições para a União, nem modifica as competências e atribuições definidas nos tratados», frase retomada, não se podia ser mais cuidadoso, na nova formulação do artigo 6 da TUE e pela Declaração 29. Mais ainda, «a sua invocação [das disposições da Carta] perante um juiz só é admitida para o controle da interpretação e da legalidade [dos actos praticados pelas instituições da União e dos Estados)», o que reduz muito fortemente o seu alcance jurídico.

Enfim, a quarta alínea do artigo 6 do TUE sobre os direitos fundamentais que indicava que a «união se dota dos meios necessários para atingir os seus objectivos e para conduzir as suas políticas» foi suprimida, confirmando assim que esta Carta arrisca-se a não ter impacto em matéria de políticas públicas europeias.

Apesar de todas estas precauções, este texto é ainda excessivo para certos governos. Assim, o Reino Unido obteve o direito de ser dispensado dele (Protocolo n.º 7) e a Polónia e a Irlanda procuram fazer o mesmo. [NT: a versão mais recente, disponível em http://www.consilium.europa.eu/ inclui a Polónia no Protocolo n.º 7]

SERVIÇOS PÚBLICOS

O artigo 16 do tratado que institui a comunidade europeia reconhece os serviços de interesse económico geral (SIEG) como um «valor comum da União» e indica que a União e os seus Estados­‑membros «zelarão por que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições que lhes permitam cumprir as suas missões». Este artigo foi alterado, tornado-se o artigo 14 do TFUE. A nova redacção evoca explicitamente a necessidade de a União e os seus Estados membros assegurarem as condições económicas e financeiras que permitam aos SIEG cumprir as suas missões. Ainda mais, é acrescentada uma nova frase que indica que «o Parlamento europeu e o Conselho (...) estabelecem esses princípios e definem essas condições».

Estas modificações são positivas. No entanto elas não tocam no essencial. De facto, a aplicação deste artigo está explicitamente submetida aos artigos 86 e 87 do tratado. Estes artigos foram conservados no TFUE. O artigo 86 tem um alcance considerável. É mortífero para os serviços públicos. Estes são submetidos às regras da concorrência, que só podem ser derrogadas se entravarem o desenvolvimento das trocas comerciais «de maneira que contrarie os interesses da Comunidade». É a Comissão que julga as derrogações possíveis. A Comissão tem assim todo o poder para abrir os serviços públicos à concorrência. Este artigo fornece a base jurídica para a liberalização dos serviços públicos.

O artigo 87 torna quase impossível a ajuda do Estado por razões de interesse geral. A referência aos artigos 86 e 87 esvazia o novo artigo 14 de qualquer alcance operacional para desenvolver os serviços públicos.

O Protocolo n.º 9 trata dos serviços de interesse geral (SIG). É a primeira vez que um texto de alcance jurídico equivalente aos tratados trata dos SIG. Ele estabelece disposições interpretativas que serão anexadas ao TFUE. O artigo primeiro clarifica o artigo 14 sobre os SIEG. Preconiza «um elevado nível de qualidade, segurança e acessibilidade de preços, igualdade de tratamento e promoção do acesso universal e dos direitos dos utilizadores». É de temer que estas formulações gerais, já encontradas para outros textos europeus, não pesem muito face à abertura à concorrência, que continua a ser a regra para os SIG.

Aparentemente mais inovador, o artigo 2 trata dos SIG: «As disposições dos Tratados em nada afectam a competência dos Estados-Membros para prestar, mandar executar e organizar serviços de interesse geral não económicos». Este artigo parece pois proteger os SIG das regras da concorrência. O problema está na definição de “serviços não económicos”, a qual não se encontra no texto.

Um acórdão do Tribunal de Justiça (C-180-184/98) indica que «constitui actividade económica qualquer actividade que consista na oferta de bens e serviços num dado mercado».

Com este tipo de definição, quase tudo pode ser considerado como “actividade económica” e portanto ser submetido ao direito da concorrência e às regras do mercado interno. E de facto, num relatório sobre os serviços de interesse geral, feito por ocasião do Conselho europeu de Laeken no fim de 2001, a Comissão indica que não é «possível estabelecer a priori uma lista definitiva de todos os serviços de interesse geral que devam ser considerados como não económicos». Ela indica por outro lado que «a gama de serviços que podem ser propostos num mercado depende das mutações tecnológicas, económicas e societais», perdendo a distinção entre serviços de interesse geral e serviços de interesse económico geral a sua pertinência.

Neste quadro, o artigo 2 arrisca-se a não ter qualquer alcance prático.

SAÚDE/SEGURANÇA SOCIAL

O artigo 18 alterado do TFUE trata do livre direito de circulação na União para qualquer cidadão da União. Foi criado um novo parágrafo 3. Indica que para este efeito, «o Conselho, deliberando de acordo com um processo legislativo especial, pode adoptar medidas respeitantes à segurança social ou à protecção social». O alcance deste artigo é limitado e exige a unanimidade dos Estados. Entretanto, é necessária a maior vigilância, quando se sabe a propensão da Comissão para pegar no mais pequeno pormenor jurídico para pôr em causa as políticas públicas.

O artigo 42 alterado do TFUE trata dos direitos dos trabalhadores migrantes em matéria de segurança social. O procedimento de unanimidade dos Estados é substituído por um procedimento mais complexo que permite a um Estado bloquear momentaneamente um projecto durante quatro meses.

A declaração 14 indica que «no caso de um projecto de acto legislativo (...) prejudicar aspectos importantes do sistema de segurança social de um Estado-Membro (...) os interesses do Estado-Membro em causa serão tidos devidamente em consideração». A necessidade de uma tal declaração diz muito sobre aquilo que será susceptível de ser tido em conta!

O artigo 127 do TFUE, que modifica o artigo 152 do tratado que institui a comunidade europeia, reafirma a responsabilidade dos Estados membros em matéria de definição da sua política de saúde, incluindo no plano dos recursos. Teria sido útil e necessário que o tratado indicasse, face à grande disparidade de sistemas de protecção social desde o alargamento de 2004, objectivos mais precisos para a saúde pública, um objectivo mínimo para a parte das despesas de saúde no PIB dos respectivos países e uma perspectiva de convergência, por cima, nos sistemas de protecção social.

TRANSPORTES

A segunda alínea do artigo 71 do TFUE foi alterada. A sua redacção actual previa que era necessária a unanimidade dos Estados para adoptar, no quadro da política comum de transportes, medidas cuja aplicação fosse susceptível de prejudicar o nível de vida, o emprego ou a exploração dos equipamentos de transporte. A nova redacção indica simplesmente que, na aplicação da política comum de transportes, «são tidos em conta» estes casos. Desaparece uma salvaguarda de protecção do serviço público de transportes.

ENERGIA

É criado um título específico no TFUE (art. 176 A). Ele situa-se «no âmbito do estabelecimento ou do funcionamento do mercado interno», isto é, da liberalização do mercado da energia. Se indica querer «assegurar a segurança do aprovisionamento energético (...) as economias de energia, bem como o desenvolvimento de energias novas e renováveis», persiste em querer «promover a interconexão das redes de energia» que pode ter, e já tem tido, consequências desastrosas, com a multiplicação de problemas criados pela liberalização do sector. O direito à energia não é sequer mencionado, enquanto que a liberalização do sector é claramente contra o serviço público de energia.

COMPETÊNCIAS RECÍPROCAS ENTRE A UNIÃO E OS ESTADOS MEMBROS

A repartição das competências entre a União e os Estados membros foi clarificada. «As competências que não sejam atribuídas à União nos Tratados pertencem aos Estados-Membros (...) a União intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados­‑Membros» (novos art. 4 e 5 do TUE). Estes princípios são definidos nos artigos 2 e 6 do TFUE.

Três tipos de domínios são definidos: os que relevam da competência exclusiva da União, os que relevam da competência partilhada entre a União e os Estados membros e aqueles para os quais «a União dispõe de competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, a coordenar ou a completar a acção dos Estados­‑Membros». Esta partilha das responsabilidades só aparentemente está clarificada.

No caso dos assuntos que relevam da competência partilhada, o tratado reformador indica que «Os Estados­‑Membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua». Não se trata portanto de uma competência partilhada com os Estados membros mas de uma preponderância das acções da União sobre as dos Estados membros. A lista dos domínios incluídos pela «competência exclusiva» e pela «competência partilhada» toca um número impressionante de aspectos da vida quotidiana dos habitantes da União, mesmo sem incluir aqueles para os quais «a União dispõe de competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, a coordenar ou a completar a acção dos Estados-Membros».

Os Estados membros mantêm um direito de veto sobre a acção externa da União e sobre a política externa e de segurança comum. Uma parte das políticas sociais e fiscais escapa ao direito da União, mas elas são na prática sobre­‑determinadas pelas políticas económicas que relevam da União. Assim, cerca de 80% das leis adoptadas pelos Parlamentos nacionais são apenas transposição do direito europeu. É isto que torna absolutamente necessária a construção de relações de forças à escala da União.

AS MODIFICAÇÕES INSTITUCIONAIS

1) DIREITO DE INICIATIVA CIDADÃ

«Um milhão, pelo menos, de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados­‑Membros, pode tomar a iniciativa de convidar a Comissão a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um acto jurídico da União para aplicar os Tratados» (novo artigo 8B TUE).

Para além do facto dos cidadãos não terem esperado pelo tratado para levar este direito de petição à prática, ele continua seriamente limitado. Deve tratar da aplicação dos tratados, estando portanto afastada a hipótese de ser levantada uma questão sobre a sua modificação. Mais, a Comissão é que decide da oportunidade ou não da petição. Em resumo, um passo em frente na intervenção cidadã, mas tão minúsculo que parece que tudo fica na mesma. Este passo pode no entanto ser utilizado como instrumento na disputa pela relação de forças à escala europeia, como uma petição o pode fazer à escala nacional.

2) ACTOS LEGISLATIVOS EUROPEUS/PAPEL DA COMISSÃO

São as directivas, os regulamentos e as decisões. A definição destes termos é dada pelo artigo 249 do TFUE. A definição da «decisão» foi alterada. Na sua definição actual, uma decisão, que é obrigatoriamente aplicável, diz respeito a um ou mais destinatários precisos. A nova definição dá-lhe um alcance mais geral. Pode­mo­‑nos interrogar sobre qual é o sentido exacto desta modificação.

O papel da Comissão é indicado num novo artigo 9D do TUE: «Os actos legislativos da União só podem ser adoptados sob proposta da Comissão, salvo disposição em contrário dos Tratados». Quais são estes casos? Eles reflectem dois tipos de procedimentos legislativos (novo artigo 249A do TFUE). «O processo legislativo ordinário consiste na adopção de um regulamento, de uma directiva ou de uma decisão conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, sob proposta da Comissão. (...) Nos casos específicos previstos pelos Tratados, a adopção de um regulamento, de uma directiva ou de uma decisão pelo Parlamento Europeu, com a participação do Conselho, ou por este, com a participação do Parlamento Europeu, constitui um processo legislativo especial». Reina uma certa obscuridade, numa primeira leitura, sobre esta noção de «procedimento legislativo especial» que aparece muito no tratado reformador. Neste caso, o papel da Comissão não é mencionado. Mas o papel da Comissão é acrescido já que um acto legislativo pode delegar na Comissão o poder de modificar «certos elementos não essenciais» neste acto (novo artigo 249 B do TFUE).

3) PAPEL DOS PARLAMENTOS NACIONAIS E DO PARLAMENTO EUROPEU

Os Parlamentos nacionais aparecem várias vezes (novo artigo 8C TUE, protocolo n.º 1 e 2...), com a manifesta vontade de reforçar o seu papel.

O artigo 7 do protocolo n.º 2 indica o procedimento que lhes permite ter papel no processo legislativo europeu. Cada Parlamento nacional dispõe de 2 votos. Dois casos aparecem. No caso de um procedimento legislativo ordinário, se uma maioria dos votos atribuídos aos Parlamentos nacionais dá um parecer negativo, o projecto deve ser reexaminado. Nos outros casos, um terço dos votos chega (um quarto no caso das questões de segurança e de justiça). O parecer negativo deve ser motivado pelo não-respeito do princípio da subsidiariedade.

O papel do Parlamento europeu é aumentado pelo aumento significativo dos domínios relevantes da co­‑decisão com o Conselho.

Enfim, um Parlamento nacional poderá bloquear uma decisão do Conselho que transforme o modo de adopção de actos legislativos por este último, no caso do Conselho decidir votar por maioria qualificada, quando seja requerida a unanimidade pelos tratados, e no caso de uma passagem de um procedimento legislativo especial a um procedimento legislativo ordinário (novo artigo 33 TUE).

4) DIREITO DE RECURSO INDIVIDUAL AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

É restringido. De facto, a 4.ª alínea do artigo 230 do TFUE é alterada. A redacção actual previa que o recurso de um indivíduo fosse possível, mesmo se as decisões que lhe dizem respeito directa e individualmente tivessem sido «tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa». Esta última possibilidade desapareceu.

5) AS OUTRAS MODIFICAÇÕES

A União vê-se dotada de uma personalidade jurídica, o que lhe permite assinar acordos internacionais em nome dos Estados membros. A maioria qualificada no Conselho passa para 50% dos Estados e 55% da população a 1 de Novembro de 2014, com medidas transitórias complexas que poderão durar até 2017. Redução do número de Comissários, também com um procedimento de transição até 31 de Outubro de 2014. Criação de um posto de Presidente do Conselho europeu por um mandato de 2,5 anos, renovável uma vez, e de um Alto Representante (o termo ministro foi rejeitado) da União para os negócios estrangeiros.

COMBATER ESTE TRATADO, EXIGIR UM REFERENDO

O tratado reformador transfere o essencial do TCE para os tratados actuais. Como disse cruamente Valéry Giscard d’Estaing «os governos europeus puseram-se de acordo sobre mudanças cosméticas à Constituição, para que ela seja mais fácil de engolir». Certamente o termo “constituição” já não é utilizado e este texto terá pois uma menor carga simbólica. Será apenas mais um tratado.

A disposição que permite ao Reino Unido ser dispensado de aplicar a Carta dos Direitos Fundamentais abre um interessante debate. Pode ser interpretada de duas maneiras. A primeira, é que os direitos sociais ao nível europeu, mesmo convenientemente reduzidos, não são obrigatórios ao mesmo nível dos regulamentos do mercado interno. O social será uma opção e a concorrência uma obrigação. É a oficialização do dumping social. A segunda, é que agora cada país poderá escolher o que lhe convém nas decisões europeias. É instaurada uma Europa à la carte com os seus inconvenientes, o aumento da concorrência entre os Estados, e com as suas vantagens, o facto de se poder recusar a aplicação de uma decisão. Por exemplo, o governo francês, que afirma querer defender os serviços públicos, poderia recusar-se a aplicar a directiva postal!

Porém, as razões de fundo para rejeitar o TCE permanecem para este tratado. Marcado de ponta a ponta pelo neoliberalismo, tanto nos princípios que promove como nas políticas que louva, este tratado situa-se no prolongamento dos de Maastricht e de Amsterdão. A União Europeia será um espaço privilegiado de promoção das políticas neoliberais. Alguns pontos positivos não põem em causa o funcionamento actual da União, marcado por um profundo défice democrático, com uma confusão dos poderes em que o órgão executivo da União, a Comissão está dotada de poderes legislativos e judiciais e o Conselho é um órgão legislativo, apesar dele próprio ser a reunião dos executivos nacionais.

A estas razões de fundo vêm juntar-se o método usado que confirma a vontade, dos governos e da Comissão, de excluir os povos e os cidadãos do processo de construção da União. A rapidez do processo de elaboração corre o risco de limitar a possibilidade de pesar no seu conteúdo, face à complexidade do texto. Um primeiro ponto pode no entanto suscitar uma larga mobilização cidadã: retirar do tratado qualquer referência à herança religiosa da Europa.

Além disso, é preciso exigir a realização de um referendo. O TCE foi rejeitado por um referendo. O tratado reformador, que retoma o essencial daquele, deve ser submetido directamente ao voto dos cidadãos em referendo.

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